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BAMBOLÊ

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A menina brincava, bambolê pra cá, bambolê pra lá. Girava aquele corpinho, aquela cintura, gostoso ver tanta harmonia. Ela apreciava e sem se dar conta estava em outro tempo, quando tinha seis anos e ouvia atrás da porta a conversa da mãe com a tia:

– Sim ela perdeu tudo porque não teve jogo de cintura, o marido foi embora com outra e agora o emprego.

– Coitada, ela não sabe ter jogo de cintura.

A menina ficou assustada, sabia de quem elas falavam. Conhecia a mulher que perdeu o marido e agora o emprego, mas o que seria o tal do jogo de cintura que ela não tinha, a menininha se perguntava.

Ficou dias com aquilo na cabeça matutando. Não tem jogo de cintura é quem não sabe brincar de bambolê, concluiu.

Ela decidiu que tinha que saber brincar de bambolê, afinal Clara, a menininha, tinha um amor, Rogério, um menino da sua classe. Amor de criança, alguns dizem que não é amor, mas é sim, e era. Ela queria casar com Rogério, queria ter jogo de cintura para não perdê-lo. Resolveu com a sabedoria de uma menina de seis anos aprender a brincar com bambolê.

Brincava tanto com aquilo que foi ficando craque. Era lindo de vê-la, rodava, fazia acrobacias, tinha talento. Os anos passando, as pernas crescendo, o corpo mudando e o bambolê ali com ela. Rogério era seu amor e ela o dele. A vida pobre, com comida contada, sapato com solas furadas, não fazia diferença para eles com seus 14 anos, até que veio um bebezinho.

Faltou um certo estudo, não faltou paixão e amor. Com o bebê no colo, o bambolê foi ficando de lado. Com o bebê no colo, outro bebê veio na barriga, e depois outro. E quando ela se deu conta já eram sete. Faltou estudo, mas não faltava força nos braços de ambos que trabalhavam naquelas ruas sem esgoto, sem asfalto, no meio de bandidos, vendo tristeza da falta de tudo de perto.

A vida foi ficando cinza, mas não reclamavam, nem ela e nem ele. Um dia, o pior da sua vida, ele se foi,  junto com um dos sete filhos, mortos em um dessas batidas policiais que você não sabe de onde veio o tiro.

A dor era a pior, roubaram-lhe a alma, que sangrava. Ela CHOROU, cortada em pedaços. Naquele momento não adiantava dizer que viriam outros dias, que os dias ainda nasceriam com sol. Naquele dia e em vários outros ela chorou. De raiva, de dor, de saudade, de solidão, de pena de si mesma. Mas era forte essa moça e sabia que tinha que prosseguir, tinha outras seis boquinhas que ainda eram de sua responsabilidade.

Perdeu a ingenuidade, mas não a dignidade, vestiu a capa de super-herói e seguiu em frente, voava com os pés no chão. Foi trabalhar na casa de gente rica, ainda era jovem, tinha belas pernas e uma bela cintura, talhadas pelos anos com o bambolê. Cozinhava muito bem, sorria, mas tinha sempre no olhar, no fundo dele, uma tristeza profunda, porém, o sorriso confundia.

Ajudava na igreja, fez questão de colocar os filhos para estudar, fez questão que todos tivessem uma religião, fez tudo direitinho.

Uma vez um patrão a agarrou na cozinha, passou a mão na sua perna. O homem era grande e gordo,  ela ficou ali sendo esmagada e atacada por aquele ser animal. Foi horrível, dessas coisas que mulher nenhuma deveria passar. Foi ameaçada por ele se abrisse a boca.

Chorou, chorou, chorou. Foi embora daquela casa, mas voltou. Com medo, mas voltou. Disse tudo que tinha que dizer para a mulher dele, fechou as portas daquela casa e fechou as portas com as outras amigas ricas da sua patroa. Aprendeu que muitas pessoas preferem viver na mentira, fingindo não ver para não perder, preferem dar desculpas para sua vida medíocre do que ser sinceras consigo mesmo. Ela sentiu um nojo tão grande daquilo tudo, que não teve dúvidas, preferia não ter o tal jogo de cintura – mesmo não sabendo ainda o que isso significava – e fechar as portas. Fechou, forte, com uma única batida,  sem olhar pra trás.

Fechou todas as portas que não faziam sentido para sua vida, das pessoas fofoqueiras, das pessoas que se aproveitam da fragilidade dos outros, das pessoas que fechavam os olhos para as coisas erradas, das pessoas que agrediam, das que berravam por nada ter o que dizer, das pessoas que roubavam comida e sonhos.

Quando fechava essas portas se fortalecia. O sol surgia e ela girava, voltou a girar com a filha mais nova que tinha nove anos. Foi ensinar bambolê naquela comunidade carente, quando se viu, apesar de todas as adversidades da pobreza, percebeu que ali, existia paz e amor.

Foi ali que montou uma escola de brincadeiras, foi ali que começou a ensinar crianças a brincar de bambolê. Formou grupos, arrumou patrocínio, fez e faz apresentações com as turmas e sempre agradece a vida e a um Deus que ela acredita.

Girando, girando, girando, entendeu depois de muitos e muitos anos o significado do que é ter jogo de cintura. Percebeu que o único jogo de cintura que tinha mesmo era no bambolê, porque quanto  ao resto, na sua opinião, não valia a pena. É autêntica demais, reta demais, menina demais na alma, assim como a outra menina na sua frente que brincava com o bambolê.

Despertou ódios em alguns, mas despertou muito mais admiração em outros. Sem meios termos, sem jogo de cintura. Lá foi ela pegar seu bambolê  e girar junto com a garotinha, bambolê para lá, bambolê pra cá.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas os contos e poesias. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência  Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos.