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DESPIDA

Eu não sei quando tudo mudou, quando a gente mudou. Quando eu mudei.

Tivemos a mais linda história de amor. Nos conhecemos naquela véspera de ano novo, na praia, em 31 de dezembro de 2018. Nosso primeiro beijo foi à meia noite. Foi mágico.

Logo, você me pediu em namoro. Disse que estava apaixonado, que queria conhecer minha família e fazer parte de cada detalhe da minha vida.

No meu aniversário, em fevereiro, você apareceu na porta da minha casa com um buquê de rosas vermelhas, todos os ingredientes para um risoto e uma garrafa de vinho tinto. Você fez tudo, e nunca, nenhum homem tinha feito uma surpresa assim pra mim.

Aos domingos, íamos à casa de meus pais para o café da manhã. Lá, você jogava vídeo game com o Carlinhos, meu irmão mais novo. Conversava sobre política com meu pai, e insistia em lavar a louça para minha mãe.

Você disse que sentia falta de uma família assim na sua vida. Me disse que cresceu sem pai e com mãe ausente, e que eu e minha família éramos tudo que você tinha ali. Nós te acolhemos, e você soube nos cativar.

Depois de alguns meses, nos casamos. Fizemos uma pequena cerimônia e um churrasco de almoço com minha família e poucos amigos, meus e seus. No fim, eu nunca conheci sua mãe.

Em seus votos, você me disse que eu era a mulher da sua vida, aquela para ser mãe de seus filhos, e a quem você gostaria de envelhecer juntinho, segurando entre mãos enrugadas e macias de tantas histórias, nossas canecas amarelas com chá de hortelã, o nosso favorito.

Nos mudamos para meu apartamento logo após o casamento. Não tivemos lua de mel, pois a situação financeira não era das melhores. Mas isso não importava pra gente, nosso amor era maior que tudo.

Pouco tempo depois, engravidei. Era nosso sonho se tornando real! Foi aí que você me disse que não fazia mais sentido eu trabalhar fora, afinal, eu estava grávida, e quem cuidaria do bebê depois que nascesse? Eu tinha acabado de receber uma promoção no meu trabalho. Eu trabalhava no RH de uma pequena empresa, e gostava muito de lá, mas mesmo assim entendi que sua ideia fazia mais sentido, pois então eu poderia descansar mais na gravidez, e focar na limpeza da casa, no enxoval do bebê e na cozinha, afinal isso eram afazeres de mulheres. (palavras suas, não minhas). Acatei, pois enxerguei ali um cuidado que você queria ter comigo e com nosso filho.

Decidimos ainda não contar a ninguém sobre a gravidez, afinal estava no começo né? Antes eu tivesse falado.

Descobri no médico que eu tinha que tomar algumas precauções com a vinda do nosso filho. Era uma gravidez de baixo risco, mas ainda assim de risco.

Quando minhas amigas me chamavam pra sair, no começo, você pedia pra eu ficar te fazendo companhia, porque tava sempre com saudades. Depois que eu engravidei me disse que agora éramos uma família e não pegaria bem eu ficar andando com um bando de meninas solteiras por aí. Até achei isso bonitinho sabe? Esse seu cuidado comigo. Então um dia, minhas amigas finalmente se cansaram de mim.

Você começou a reclamar que eu estava gastando demais com comida, com o enxoval do bebê e disse que começaria a fazer hora extra no trabalho. Me imaginei tricotando pra fora para ter alguma renda, o que já era um sonho meu, mas você disse que não. Que eu devia focar na gravidez, na limpeza da casa, nas nossas refeições. Tudo bem então.

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Eu não sei quando tudo mudou, quando a gente mudou. Quando eu mudei.

Você passou a chegar cada vez mais tarde em casa. Disse que era o trabalho, o chefe. Mas comecei a sentir seu hálito de álcool. Um dia que você chegou bêbado e foi direto pra cama, encontrei marcas de batom vermelho pelo seu corpo. Clichê né? Aquilo doeu, como se uma faca tivesse pulsado em meu coração.

Guardei pra mim. Chorei no banho. E a vida continuou. Entendi que aquilo era sua maneira de escapar, afinal não podíamos transar por causa da gravidez de risco que eu tinha, e por isso você teve que buscar isso fora de casa. Eu compreendi depois de um tempo e aceitei. Era temporário, e eu sempre seria aquela que você amaria. Com as outras era só sexo. Tudo bem então.

Noitadas esporádicas se tornaram rotina, e o cheiro de álcool impregnava o quarto. Era cada vez mais difícil te entender e sentir aquele cheiro sem ir vomitar no banheiro. Não sei mais se eu vomitava pelo enjoo da gravidez, ou pela mágoa do que você estava fazendo comigo. Ainda assim, decidi ficar quieta. Eu não queria brigar com você. Eu ainda te amava, e você era o pai do filho que eu carregava no ventre. Não te contei, mas era um menino.

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Eu não sei quando tudo mudou, quando a gente mudou. Quando eu mudei.

Uma noite você chegou pior do que das outras. Chegou quebrando tudo. Estava muito nervoso. Você gritava comigo. Disse que não tinha comido nenhuma puta naquela noite, e então só restava eu. Eu disse que não, te implorei, disse que ia perder o bebê. Você nem me ouviu. Me jogou no chão, e com uma faca em meu pescoço me obrigou a ficar de quatro. Você me machucou. Machucou meu corpo, machucou minha alma, e me largou ali no chão como se eu fosse um nada pra você. Eu perdi o nosso filho naquela noite.

Desde então, a vida perdeu o sentido para mim. Nada mais me importava. Você chegava em casa e me batia. Um dia era porque o jantar não estava na mesa, o outro era porque o arroz estava muito salgado. Você me batia, pois dizia que eu era a responsável por ter perdido o nosso filho. Você me estuprava porque dizia que eu tinha obrigação de engravidar de novo.

Eu não resistia. Eu tinha vergonha. Eu tinha culpa do que tinha feito com a gente, do que tinha feito com a minha vida. Na verdade, eu nem sei o que eu tinha feito. Eu me escondia dos vizinhos, e da minha própria família. A cada final de semana, inventava uma desculpa. Dizia que estávamos sempre a viajar. Até que minha mãe descobriu.

Ela bateu na porta de casa um dia, e me encontrou. Marcas roxas pelo corpo, rosto esfolado. Eu já não era mais eu há muito tempo.

Ela quis me levar embora, mas eu não fui. Eu já tinha tudo planejado.

Eu não sei quando tudo mudou, quando a gente mudou. Quando eu mudei.

Desculpa mãe, desculpa pai, desculpa Carlinhos por não ter sido a filha e irmã forte que vocês queriam que eu tivesse sido. Perdão por ter me tornado cega de amor. Perdão por não ter escutado a vocês enquanto era tempo.

Esta manta é a lembrança do neto que vocês nunca chegaram a saber que existiu. Não contei a vocês, mas era um menino. Ela é azul, assim como a minha manta de quando eu era bebê.

Agora é tarde, e eu já não consigo mais viver com a culpa do que aconteceu na minha vida. Eu o matei. O matei por ter me tirado a alma, e ter me deixado só com o corpo. O matei por ter tirado à força de mim meu bem mais amado. O matei pelas tantas outras mulheres que descobri depois que ele violentou e enganou.

Não quero que chorem, pois estarei melhor pra onde quer que eu vá.

E eu me vou despida de bens, despida de amor, despida de medo, com o alívio de não ter que viver mais essa vida. Eu o matei a punhaladas, e cada punhalada foi por uma mulher que ele fez sofrer. Foram dez.

Ariela Maier – Bela urbanas, uma empreendedora e escritora que ama viajar. Se encontra e se desencontra pelas palavras e gosta de pensar que através da escrita, ajuda almas perdidas que carecem de emoções e histórias cheias de vida. @Arielamaier