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A pandemia tem nome: é saudade

Tenho revisitado muitas músicas desde que a pandemia começou. Na verdade, corri para as músicas em uma sincera tentativa de me reconectar com uma parte minha que não seja terra arrasada, quer pelo número de mortos que nos bate às portas, todos os dias, com suas tristes sinas, quer pela incompetência de quem nos governa. Entre a tristeza profunda e a raiva pesarosa, tento modular a vida com sons de vozes que, se não são minhas, pelo menos dizem de mim em meio à pandemia.

Conheci a música “Triste, Louca ou Má” em uma apresentação escolar, meses antes da pandemia, quando uma aluna corajosa decidiu mostrar a canção à capela durante um sarau. Parece que me refiro a outro mundo quando penso que os alunos se reuniam em aglomerações ruidosas e riam e se tocavam e se emocionavam e brigavam. Hoje temos essa adaptação forçada a uma vida escolar online e bem sabemos que essa “tal vida” não atinge a todos, sobretudo os estudantes de escola pública, pois milhares deles ficam à margem dos aplicativos por não terem nem celulares modernos e, muito menos, internet à disposição.

Vejo o abismo da desigualdade escolar crescendo enquanto me sinto uma farsa como profissional da educação, tentando chegar a um lugar que não sei onde. E quero deixar muito claro que, mesmo à beira desse abismo que se descortina, não concordo com nenhuma retomada escolar enquanto professores não estiverem vacinados. Estamos a um ponto da pandemia em que alunos também precisavam ser, já que não existe grupo de risco e, sim, país de risco. Tenho trabalhado presencialmente e posso dizer, sem sombra de dúvida, que sinto medo. Estou em uma idade “morrível viável”, como dizia uma personagem em um dos mais belos livros que li: “O Deus das Pequenas Coisas”. Infelizmente, a idade morrível viável agora se ampliou assustadoramente e, diante da morte, não há subterfúgios como “as escolas precisam abrir para que os alunos possam ter uma parte da vida deles de volta”. Não há “vida de volta” porque não há normalidade nas escolas: só máscaras que escondem o rosto e olhos que ainda não entendem no que a vida se transformou. Somos todos seres mais ou menos tristes agora.

Outra música na qual penso bastante é O Ronco da Cuíca, de João Bosco. A letra diz: “A raiva dá pra parar, pra interromper / A fome não dá pra interromper / A raiva e a fome é coisa dos home”. E é realmente “coisa dos home” que poderiam ajudar mais, desde que não legislassem por causa própria. Ao mesmo tempo, vejo tanta coisa sendo feita por homens e mulheres anônimos, que decidem ajudar o próximo seguindo a máxima de Cristo de dividir os pães. A caixa do supermercado me surpreende. Depois que eu reclamo do preço final da compra me referindo a como as famílias grandes sobrevivem, a moça do caixa me diz: “às vezes, deixo passar os produtos para que aquela família leve o que precisa”. Deixar passar significa que a moça do caixa paga a diferença do próprio bolso no final do mês. Foi o jeito que ela encontrou de ajudar e meus olhos já tão magoados se enchem de esperança por essa solidariedade possível.

Essa pandemia tem me feito um mal tremendo, porém tem me ensinado lições importantes sobre amar: sinto falta do calor dos abraços. Sinto falta da risada dos meus alunos. Hoje digo que amo com muito mais facilidade, porque realmente amo e porque tenho pressa: não sei por quanto tempo esse amor será possível. E por não saber, esse tempo me é mais caro. Quero tentar me tornar um ser humano melhor, a despeito das inúmeras raivas que fervilham em mim. Quero acreditar que posso voltar a ser a professora que um dia fui. Todo dia, neste país e nesta pandemia, vivemos um eterno recomeço. Preciso crer no que diz Ivan Lins: “vai valer a pena ter sobrevivido”.

Natalia kuhl – Bela Urbana. professora, leitora entusiasta de diversos tipos de escrita, amante de músicas – nem sempre clássicas. Falante e com memória seletiva. Raivosa diante da injustiça e amiga de coração aberto. Escrevo muito para mim mesma e canto no chuveiro.