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Capitu, captou ?

Entardecia em São Carlos na década de setenta, eu entretido com um desenho para a faculdade numa prancheta enquanto a avó da Teresa costurava ao lado. Habilidosa, há décadas se dedicava a fazer de um tudo com panos e linhas, trabalho que exige muito da visão.

Incomodada me disse precisar dos óculos ao entardecer e se pôs a esfregar polegar e indicador sobre as lentes na esperança de limpá-los, sem nenhum sucesso. Ofereci-me então para lavá-los. Suspirou aliviada, agradeceu carinhosamente e continuou na lida noturna.

Abandonei o hábito da juventude de lavar meus próprios óculos. Quem sabe foi a piora evidente da minha visão ou fui eu que desisti de enxergar os detalhes da realidade? Há um pouco de tudo, mas a idade nos impele a entender a vida para além dos sentidos físicos apurados.

Quantas vezes me deparo com alguma situação e percebo compreendê-la, vislumbra-la instintivamente. “Mas como você sabe disso?”, pergunta-me Teresa com seu sábio rigor científico. Sinceramente não sei, o tempo dirá se faz algum sentido.

Algumas vezes faz sim, mas nem sempre, nem sempre. Recordo-me do belo e devastador romance “Dom Casmurro”, magistral obra de Machado de Assis. Há pouco assisti novamente a adaptação “Capitu“ feita em 2008 para a TV na qual brilhou a linguagem teatral e foram utilizadas lentes distorcendo as imagens.

Assim, Bentinho envelhecido conta sua vida através das memórias desfocadas resgatando, com exageros, tanto a beleza e alegria de sua juventude assim como o abismo da sua certeza no qual foi lançado pelas próprias dúvidas quando adulto.

A traição deixou de ser uma hipótese para ele, passou a ser fato justificando seu cruel desprezo pela morte da esposa e do filho. A amargura destruiu qualquer amar.

Vejo, com preocupação, muitos assumindo papéis semelhantes em relação ao que enxergam na própria vida, na sociedade e no mundo. Após décadas de trabalho sentem-se traídos pelos outros, pelas instituições ou ideologias; imputando-lhes toda culpa pelo que vivem agora.

Argumentações racionais dificilmente os demovem. Infelizmente “Bentinho” não quer mais limpar suas lentes, doentiamente obcecado prefere se colocar como vítima e atribuir sua adolescência de plena felicidade, assim como a tristeza da sua maturidade apenas e tão somente aos olhos oblíquos e dissimulados de “Capitu”. É…, Machado de Assis era grande mesmo, se fosse medíocre teria nos oferecido certezas.

Carlos Lopes – Belo Urbano, engenheiro pela USP, fez carreira em multinacional do ramo automotivo. Foi professor da Unicamp e da UniMetrocamp. Atualmente é diretor voluntário de Creche beneficente. Cronista, ator de teatro, diretor e produtor cultural em multi me