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Viajo no tempo

Viajo no tempo e me vejo na primeira infância falando pelo telefone preto, pesado – grande para aquela mãozinha –, com a Carminha Lucia, a amiga imaginária. Lembro-me do avô Julio querendo me levar para a casa dela, sorrio ao lembrar. Será que ele era um provocador?

Viajo um pouco mais no tempo e lá estou eu sentada ao lado desse avô na sua casa, eu ouvindo-o me contar sobre seu pai quando veio para o Brasil brigado com o pai dele (meu trisavô), que iria se casar de novo.

Viajo mais um pouco no tempo, mas para uma época perto daquela, e lá estou de novo com meu avô analisando a grafologia das amigas do colégio: “essa é burra, a letra é assim…”, “essa é íntegra…”, aprendendo sobre numerologia, linhas da mão, e sem perceber nascia ali a Madame Zoraide.

Viajo de novo e vou para o carnaval da infância, matinê no clube, vestida de baiana, o colar da prima Gi arrebentou antes de irmos… o choro…, mas no final nos divertimos com muitos confetes e serpentinas no salão, tudo certo, brincar sempre foi bom.

Viajo novamente e lá estou com a amiga Kátia, fazendo aulas de direção juntas, fazíamos muitas coisas juntas, o instrutor desesperado, que as alunas saíram sozinhas com o carro. Lembro-me dos olhos verdes do instrutor.

Na esquina do tempo, me vejo prestes a entrar na igreja com meu pai ao lado, escuto de uma futura (ex) cunhada que nunca viu uma noiva tão calma. A frase ficou na cabeça, contei para a Gi e ela disse: “é porque fizemos teatro, já conhecemos um palco”.

Viajo para a infância, acordo na sala, desesperada, achando que iria morrer porque algo dentro de mim fazia barulho, e a Vó Gisa a me dizer que aquilo era o coração que batia. Fazia barulho porque eu estava viva, “se parar, morre”. Quantas vezes coloquei a mão no peito só para sentir o coração bater e saber que estava viva.

Viajei de novo no tempo e fui para o começo da Modo na casa da Vó Luiza, tempo bom, muitas lembranças, bilhetinhos, fax, paradas para fazer o almoço, hortinha no quintal, máquina elétrica de escrever e um telefone preto que enfeita hoje a minha casa, 23560, era esse o número, depois entrou um 3 na frente e da minha casa foram 87054, 516529, 32516529, tivemos também o 32542001 e depois tive o 32130585 – será que este era o da minha casa ou da Modo? Neste momento não sei mais.

Viajo no tempo e estou no sofá passando a mão na barriga, sentindo o bebê mexer, e digo: “oi, filho”, ele acalma, quando nasce chora, vem para perto do meu rosto e eu digo: “oi, filho” e ele para de chorar na hora, Bruno, o meu mais velho.

Com cada filho, uma lembrança no nascimento. Pedro com o choro forte e voz grossa, até as enfermeiras falaram, e com a Carol chorei muito entrando no centro cirúrgico, medo de morrer e deixar os três, mas foi tudo bem e ela nasceu linda, forte e saudável.

E que mãe sou eu, afinal? Prefiro não responder, deixo a pergunta para meus filhos.

Na esquina do tempo, lembro do bolo de formiguinha da minha mãe e de tantos outros sabores que já experimentei.

Pés na areia, água salgada, montanha, escola de samba, danceteria, festival de violão, balé, teatro, comemorando a entrada na faculdade. A sensação boa ao descobrir como é bom abraçar e ser abraçada pelo namorado. Andar de bicicleta…

As memórias são tão ricas que nem cabem em um só sonho ou texto. Fico com elas dentro de mim, construindo todo dia novas.

Às vezes os dias são quentes, mas tem lágrimas. Às vezes os pés doem. Às vezes o carro para. Às vezes eu viro a esquina errada e mudo o caminho, e, nesse caminho, afetos. Sim, encontro muitos afetos e alguns poucos desafetos.

A vida é ida!

Adriana Chebabi  – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.

 

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Sensorial

Brisa gelada
Redondo caminho
Algodão doce, maresia

Heidi na tela
Mar pacífico,
Gaivota no ninho
Carioca no carteado
Minha vó,
Com sorriso do lado

Melancia e um bom vinho.
Partiu? Pra onde?
Quintero, los enamorados
Pinheiros cercados
Vista à vista,
Um barco, o oceano…
Sempre…as memórias
Um bom ano
Cheio de histórias.

Macarena Lobos –  Bela Urbana, formada em comunicação social, fotógrafa há mais de 25 anos, já clicou muitas personalidades, trabalhos publicitários e muitas coberturas jornalísticas. Trabalha com marketing digital e gerencia o coworking Redes. De natureza apaixonada e vibrante, se arrisca e segue em frente. Uma grande paixão é sua filha.
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Meu relicário

Quando não sei o nome de algo, sofro para entender o que está acontecendo e a partir
daí construir sentidos. Não soube nomear muitas situações ao longo da minha vida,
nessas horas deixei que as emoções e sensações falassem por si só. Aos poucos, fui
conseguindo expressar melhor os sentimentos para assimilar melhor algumas percepções.

Tento, sempre que possível, fazer uma autoanálise para encontrar palavras escondidas
aqui e ali, e assim, entender melhor as experiências que vivencio no dia a dia.

Nas experiências da morte e do luto, busco recolher sentidos para compor meu relicário.
Para nomear as experiências, vou lembrando de histórias e assim, garimpando
preciosidades para guardar…

Minha bisavó dizia que eu nasceria no mesmo dia e mês que ela. Essa conjunção astral na
verdade não ocorreu. Escorreguei pelo ventre da minha mãe um dia antes da profecia da
bisa e um mês depois da sua morte. Esse fato marcou minha chegada ao mundo.

Quando eu nasci, fiquei sem nome por uma semana. Como meus irmãos tinham nomes
que iniciavam com a letra T, foram sete dias para encontrar algo que se encaixasse com
essa tradição familiar. Gosto, pois, silabicamente, é quase o mesmo nome de frente para
trás e vice-versa: Thalita – Talitha. Nunca entendi o efeito da letra H, mas compreendi um
elemento de força nele, por isso mesmo, vinte e quatro anos depois, repeti este enigma do
agá no nome do meu filho, Arthur.

Assim como o nome nos marca em nossa existência, compreender a vida pela imposição
da morte tornou-se um processo contínuo para mim. Minha lembrança mais marcante da
sensação de morrer foi quando vi minha avó pegar um cabo de vassoura e ir decidida até
o galinheiro no fundo do quintal. Estranhei ela pegar uma galinha pelos pés e, agilmente,
prender seu pescoço no cabo de vassoura sobre o chão. A asfixia reverberou em batidas
de asas desesperadas e, ao fim, ouvi um som estridente e estranho. Um assassinato
acabava de acontecer! Eu senti um vazio no estômago e uma ânsia, fiquei zonza como se
me faltasse ar. Após isso, o corpo da ave foi levado de ponta cabeça para um panelão de
água fervente. Depenamos a defunta e depois, abrimos sua barriga e separamos os
órgãos. “Cuidado com o fel”, disse a minha avó, “pode azedar a carne e estragar tudo”. Essa
rotina era, para ela, algo mecânico e necessário para a rotina do lar. Minha avó diz com
orgulho que foi a primeira mulher a vender frango limpo em sua cidade e me mostrou que
canja com pés de galinha é a melhor alimentação quando alguém está doente. Com o
episódio da galinha, entendi melhor quando as pessoas diziam que “perdiam o chão” com
a morte de alguém.

Em meu relicário, guardei uma pena.

Certa vez, numa aula de matemática onde reinava um silêncio amedrontador, bateram na
porta, era a diretora que, com os olhos preocupados, sussurrou algumas palavras no
ouvido esquerdo da professora que, aos poucos, foi ficando estarrecida até que pôs as
mãos na boca. Percebi que algo não estava bem. A diretora chamou a minha melhor amiga
e pediu para ela pegar o seu material e ir se encontrar com a mãe que a esperava em sua
sala, lá embaixo. Minha amiga saiu da sala sem entender nada. Na porta, vimos que
começou a chorar e foi abraçada pela diretora. Soubemos depois que seu pai tinha
morrido. Pouco falamos sobre isso. Quando ela retornou, dias depois, percebemos que
Ponto Final
evitava conversar sobre o assunto e nós fingíamos que nada tinha acontecido.

Em meu relicário, guardei uma folha de caderno em branco.

Quando meu pai fez quarenta anos, eu achei que ele ia morrer. Estava com nove anos e,
não sei bem o porquê, quarenta representava, para mim, o final da linha. Durante a sua
festa de aniversário eu ficava pelos cantos chorando, olhava para ele e achava que não o
teria por muito tempo. Minha mãe percebeu minha desgraça e conversou comigo. Ele
sobreviveu, passa bem e está hoje com sessenta e quatro anos. Exatamente dez anos a
menos do que a idade que meu avô tinha quando almoçou, foi dormir e morreu. Foi minha
irmã quem me avisou. Tinha acabado de voltar da escola, era final de tarde, ela olhou para
mim e, como se fosse um comunicado oficial, anunciou “o vô morreu, o pai e a mãe foram
lá para resolver as coisas”. Acho que sua confusão também era tão grande que ela soube
apenas voltar ao que estava fazendo e eu mergulhei à deriva em pensamentos confusos e
muitas lembranças. Perder alguém bem próximo é assim, acontece em um dia comum,
daqueles que você acorda, toma café, organiza a casa, vai para a escola ou para o trabalho,
volta e descobre que terá um velório naquela mesma noite.

Em meu relicário, guardei a lembrança de um pôr do sol.

Depois aconteceu com a Madonna, minha cachorra. Ao que parece o rim foi perdendo a
vitalidade. Pouco se falou da história. Ela foi levada ao veterinário e não voltou mais. Só fui
sentir o vazio dessa perda um tempo depois, ao rever uma foto dela, em que tive a
consciência de que nunca mais me aninharia em seus pelos ou dormiria aconchegada em
sua barriga. Não pude ritualizar uma despedida, talvez nem saberia o que fazer ou talvez
teria medo ou vergonha de expressar o que sentia.

Em meu relicário, guardei uma loba.

Ainda criança, minha avó sempre me levava ao cemitério. Quinzenalmente ela limpava os
túmulos dos conhecidos e levava flores frescas. Lembro dela praguejar àqueles que
deixavam flores de plástico por ali e me advertia que se fizessem isso com ela viria puxar
os nossos pés à noite. Me impressionava com o silêncio do lugar, com as fotos
descoloridas, os nomes e as datas. Exercitava os cálculos matemáticos para saber o tempo
de vida daquelas pessoas. Quando calculava uma existência com menos de cinco anos,
sentia um frio na nuca e uma tristeza desoladora. Acho que minha avó percebia e, para me
tirar do torpor, me perguntava se eu lembrava onde meu avô estava enterrado.

Em meu relicário, guardei mensagens de esperança.

Vinte e três de agosto é, para mim, uma data marcante. Foi quando meu tio/irmão morreu
de leucemia. O tratamento disponível possibilitou dezesseis dias para uma despedida que
jamais imaginaríamos fazer. Foi algo brusco! Ele fez parte daquela baixa porcentagem de
pessoas que apresentaram reações adversas por uma medicação. Tinha trinta e três anos.
Nesse dia, os médicos ligaram e pediram para a família ir até o hospital, minha mãe ficou
tão desolada que eu senti que precisava segurar a onda. Essa tensão gerou um epicentro
emocional e o tsunami me devastou, mas deixou o essencial para que permanecesse em
pé. Enquanto recolhia os cacos aqui e ali, me sentia navegando num singelo barco num
mar de águas profundas como se algo e não eu, controlasse meu percurso. Em pouco
tempo me casei, tive meu primeiro filho e um dia sonhei com meu tio/irmão onde me
abraçou e desejou paz, amor e luz. Foi muito bom!

Em meu relicário, guardei sonhos.

O tempo passou, mudei de cidade e sofri um aborto espontâneo. Perdi uma vida
intrauterina de dez semanas. Chamei-a de Catarina. Seu coração não bateu. Em meio ao
sangue e a dor das contrações de expulsão, fui arrumar o guarda-roupa e no silêncio
desse momento, encontrei apoio em meu companheiro e ao meu filho. Senti vergonha,
não sei por quê. Parecia que as pessoas próximas tinham medo de conversar comigo e o
que eu mais precisava naquele momento era de colo, de carinho e só fui conseguir
quando minhas avós me acolheram certo dia e narraram sobre suas experiências
abortivas. Com elas, eu pude entender que situações ruins acontecem e não temos
controle algum sobre elas, simplesmente fazem parte da Vida.

Em meu relicário, guardei o símbolo do infinito.

Como diz meu pai, coisas boas e ruins acontecem com todos. A cada nova experiência de
entrada ao mundo de Perséfone, a deusa grega do submundo e das estações, uma nova
marca na minha alma. Como tatuagens, tornam-se rituais de passagens que me ensinam a
estar à altura nesse momento tão misterioso.

Dizem que luto envolve luta. Mas quem, nesses momentos, tem forças? Para mim, tem
sido experiência solitária. Uma travessia constante por entendimento, uma jornada
noturna pelo silêncio.

Aos poucos encontro meu bando: pessoas que escolho compartilhar vivências e que me
acolhem como se estivessem bebendo água fresca com a mão em formato de conchinha.
Com respeito, me escutam sem julgar e me presenteiam, numa troca sincera, com as suas
histórias. Formamos círculos. Essas pessoas me apoiam e me fortalecem de tal forma que
me sinto aconchegada em uma colcha de retalhos macia e protetora.

Em busca de um santuário, vou para baixo de uma árvore. É ali que sinto saudades dos
que já se foram. Observo o farfalhar das folhas, sinto a textura do tronco e a magnitude
das raízes. O vento no rosto reverbera o voo dos pássaros… Esse relaxamento me conduz
para uma conexão profunda com a natureza, e ela me conduz ao encontro do infinito
daqueles que não estão mais aqui. Nessas horas, tenho a sensação de que as coisas
continuam e que a eternidade está na transformação. Vida e morte são apenas um “até
logo”.

Diante dessas e outras histórias, estou aprendendo a nomear minhas emoções. Quando
não consigo, empresto palavras dos outros. No mastro do meu barco imaginário, que faz o
percurso pelas águas da Vida, tem uma bandeira onde bordei uma provocação do
Nietzsche “Você vive hoje uma vida que gostaria de viver por toda a eternidade?”. Levo
também um diário de bordo, nele escrevo recadinhos, frases, pensamentos e sonhos. Um
amuleto que me lembra sempre de ir dormir em paz e de bem com as pessoas ao meu
redor, falar e expressar verdadeiramente o que sinto e estar presente nas coisas que faço.
E assim, vou compondo meu relicário da vida.

Thalita Jordão – Bela Urbana, é também professora e peregrina pelo mundo da leitura, arte e reinação. Gosta das paisagens geograficas, café com conversa fiada e sente uma atração imensurável pelos silêncios e mistérios da vida. Dizem que é estranha, mas ela se orgulha de ser amiga das bruxas.
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Memórias de um verão

Na correria dos dias de um ano intenso que estava quase terminando, os compromissos se acumulavam na mesma velocidade que os meses são contados em semanas, dias e horas.

Eram muitos detalhes importantes (paradoxo, eu sei) e uma lista quase infinita de pessoas que deveriam ser informadas sobre o acontecimento que se anunciava. Muita gente já aguardava, mas, para outros seria uma grande surpresa.

Para que nada desse errado, contratei uma cozinheira para comidinhas frugais, dessas de comer com as mãos e pedi à equipe de buffet para providenciar guardanapos floridos que deveriam ser espalhados pela recepção, evitando digitais engorduradas sobre o verniz natural. O cuidado é o pai da paz e o estresse não é camarada, por isso, tais observações foram anotadas numa lousa, em letras legíveis.

Comprei as bebidas com antecedência e deixei para gelar para que ninguém reclamasse da temperatura. Afinal, refrescar renova as boas energias e rejuvenesce até o céu.

Uma confeiteira foi trazida das Minas Gerais para que a doçura marcasse as bocas e as almas dos presentes.

Recomendei que a música fosse alegre e constante, mas que tocasse baixo, para que conversas melodiosas fossem as verdadeiras donas daquela festa.

Cada canto da sala deveria ter flores mistas e muita folhagem de alecrim e manjericão para que o visual enchesse os olhos enquanto o vento se incumbiria das profundas inspirações olfativas que aguçam os desejos e a fome.

Pedi que na porta dos banheiros houvesse bacias com toalhas quentes, para desinfetar as pontas dos dedos como se faz nos eventos orientais e, ao lado das bacias, tinas vazias para se depositar as toalhas usadas. Simbolicamente, a ideia era preservar o essencial e descartar o que arrisca a nos contaminar. Mas, sei que é uma interpretação sofisticada para a maioria das pessoas. Talvez seja o caso de repensar este conceito.

O salão foi projetado para parecer movimentado, com luz neutra, vários sofás redondos e mesas desiguais, de madeira verde, sem toalhas, nem vidros; mesas cruas e cadeiras fofas para os corpos cansados numa tentativa de mostrar um ambiente em construção, assim, toda a magia seria compartilhada com as pessoas.

Tudo aritmeticamente preparado para o clima de verão de um ano nem muito quente, nem muito frio, que jamais combinaria com algo morno. A intensidade deveria ser sentida visceralmente.

Uma ideia extravagante surgiu de última hora, provocando as mentes organizadoras, que, se fosse possível, atingiria o ponto alto do impacto que se desejava causar. Imaginei que no fundo da casa, numa edícula pintada de amarelo e lilás, ficariam duas tatuadoras à disposição dos que quisessem carregar uma memória vitalícia daquele dia ou daquela noite, conforme o momento da visita. Um longo estudo e muitas objeções.

Por fim, eu mesma deveria me aprontar para ser vista. Fiz questão de seguir a longa agenda feminina de cabelo ao natural, maquiagem bem leve em tons de saúde, unhas feitas sem nenhuma cor, apenas o básico de apresentação.

O traje não foi uma escolha minha, mas fiquei satisfeita com a elegância que o ofereceram a mim. Uma camisola branca, de cambraia finíssima, com pespontos em vermelho e roxo, adornada por xale vermelho de tricô de linha. Uma combinação de conforto e delicadeza que me identifiquei por definição.

Antes, porém, de ver a engrenagem desta celebração em funcionamento, eu resolvi me presentear com minutos de relaxamento que duraram horas. Cochilei com os pés imersos numa banheira fria que fez meu corpo se ajustar ao colchão afetivo que me envolvia. Como costumam dizer: “tempo de sono dos justos”.

Às dez horas, sem despertador ou aflição, eu me lembrei de nascer.

Rompi a bolsa d´água, desci por um corredor úmido e estreito e respirei de uma vez só todo o ar do mundo. Chorei o mais alto que pude para sinalizar minha forte presença nua.

Enquanto isso, pessoas riam, conversavam, brindavam e davam boas-vindas à mulher que eu, um dia, haveria de me tornar.

Poucos segundos de olhares fixos em mim e uma eternidade de promessas e expectativas criadas por quem passou pela vida festejada recém parida na memória de um verão qualquer.

Dany Cais – Bela Urbana, fonoaudióloga por formação, comunicóloga por vocação e gentóloga por paixão. Colecionadora de histórias, experimenta a vida cultivando hábitos simples, flores e amigos. Iinstagram @daniela.cais
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Terra molhada

Se tem um gatilho universal para a memória, é o cheiro de terra molhada.

Feche os olhos por um instante e imagine esse cheiro. Onde você foi parar? Vou falar por mim.

Uma janela, a luz difusa do sol promete um lindo dia, o sabiá cantando, a sombra das folhas e galhos na parede. Cheiro de terra molhada denuncia a chuva da noite. Fico deitada, só mais um pouquinho, ouvindo os sons, enebriada pelas sensações.

Um pomar, a liberdade de correr, sem medo de se molhar na chuva quente do verão. Ou pelas ruas do bairro, poças que refletem o céu.

À entrada da casa um tapete ou paninho, pois aos pés descalços só resta tentar limpar o quanto der.

Ainda chove? Talvez. O cheiro de terra molhada persiste ainda.

Um outro dia, a terra molhada, cadernos e apostilas, que desperdício de tempo. Uma pausa, cheirinho de café e pão de queijo e volta para os estudos. O diploma prova um tempo bem gasto.

Cheiro de terra molhada, uma taça de vinho para celebrar. Um toque macio, o cheiro de outra pessoa a me amar.

Terra molhada. Os filhos correm lá fora, foram ensinados a também reverenciar as dádivas da natureza. A vó acha que podem ficar gripadas, mas não, mãe, deixe que aproveitem.

A vó é tão divertida, gritam os netos – a vó agora sou eu – que comigo correm na terra molhada. Na entrada da casa do rancho, um pano, pois nossos pés descalços precisam limpar a terra e a grama neles grudados. O vô traz o pão de queijo e o suco para as crianças e, para mim, café com beijo quentes.

Uma luz difusa entra pela janela, a sombra de galhos e folhas na brisa, o sabiá está cantando e o cheiro da chuva que passou, terra molhada, anunciam um belo dia pela frente, com as memórias daquele lugar especial. Todo dia é especial, mas alguns são mais que outros.

Synnöve Dahlström Hilkner – Bela Urbana, é artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de HumBelor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.
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O primeiro monstro de nossas vidas é o Papai Noel

CENA 1

Uma mamãe no final da gravidez, mês de maio, indo para o hospital para acontecer o nscimento do seu filho!

Quando o bebê chegao ao quarto para ela que está junto com o marido ao seu lado e alguns da família, ela diz:

Ai! Ainda bem que ele nasceu antes do Natal!

Pois eu quero apresentá-lo ao “Papai Noel”, teremos uma bela árvore natalina em casa! Ao que o papai do bebê diz:

Já comprei meu amor a árvore e ela tem 02 metros!

Ei….

CENA 02

Chegando ao apartamento pais e bebê!

E na portaria do prédio um caminhão de entrega da árvore com 02 metros do novo inquilino do 25º andar!

E foi aquela perlenga para a dita árvore de um natal daqui a 07 meses chegar ao 25º andar!

Ainda nem a festa junina foi saudada!

E o bebê chorando o tempo todo daquela anarquia entre sobe ou não a árvore em questão.

Chama o síndico!

E lá vem Tim Maia

CENA 03

Resolvido o problema da subida da  árvore que precisou ser podada no hall de entrada do condomínio!

Foi uma festa de serra aqui acolá… e o síndico foi a loucura!

E assim se passaram o tempo e o bebê mal esperava conhecer o  1° monstro de sua vida nesta terra gentil varonil!

Papai Noel está no Shopping! E lá vai a mãe do bebê levando a sua máquina registradora de momentos inesquecíveis!

E se coloca defronte o bom velhinho mostrando aquela cara rosada dizendo:

Veja meu filho ele que traz presentinhos!

Vamos sentar no colo dele?

O velhinho estica os braços olhando firme para o bebê que berra ao enlaço do fofo Noel sentado naquela cadeira que se parece com a sua cadeira do quarto…..

Mas… Santa Maria do Sininho!

A mamãe não diz, mas ela tem um trauma sobre isto… na cidade onde morava não tinha um Noel tão bonito.

Ela acalma o seu bebê e o coloca “de costas” no colo do fofo Noel!

E dá-se o clique bem rápido e ali está para o mundo a imagem do encontro do primeiro monstro social que ainda em estado bebê somos forçados a sentar e ainda sorrir para ficar bem na foto!

Reparem que a maioria de fotos de bebês/crianças na 1ª infância está de costas para o fofo Noel!

Entendem?

O gatilho? Ora, é o Natal e para ser bem precisa é o dito Papai Noel… O bom velhinho!

É Natal, que algumas mãezinhas esxpõem seus filhos diante de suas loucas verdades!

É um fuzuê!

Joana D’arc de Paula – Bela Urbana, educadora infantil aposentada depois de 42 anos seguidos em uma mesma escola, não consegue aposenta-se da do calor e a da textura do observar a natureza arredor. Neste vai e vem de melodias entre pautas e simetrias, seu único interesse é tocar com seus toques grafitados pela emoção.

 

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A rua dos vagalumes

Com o fim do primeiro casamento de minha mãe na metade dos anos 90 nos mudamos eu e ela para uma casa em um quintal compartilhado e também propriedade da Dona Carol, senhora essa que tinha alguns netos que viviam a brincar na rua enquanto a lua fazia a iluminação natural do local.

No dia que nos mudamos para lá, lembro de ter tantas caixas empilhadas pela casa que para minha sorte minha mãe não achava as panelas e tampouco talheres, por isso procuramos a padaria mais próxima de casa e enquanto ela pedia as gramas de mortadela e pães quentinhos aquele cheiro de “padoca” inebriava todo o espaço daquele lugar.

Nesta nova vida éramos somente eu e ela, e toda confiança que eu depositava nela voltava para mim quando ela me pedia para me trocar e colocar o uniforme da escola na primeira chamada do Sítio do Pica Pau Amarelo que começava ao meio dia em ponto na rede Globo, assim só lhe restava pentear meu cabelo enquanto dividia seu horário de almoço entre comer, me buscar em casa e levar-me para escola. Lembro de chorar apenas uma vez sentindo sua falta e ser consolada com massinhas de modelar e ser a escolhida do dia para ajudar a professora por uma tarde inteira.

Quando podia minha mãe me levava também ao seu serviço, um pequeno salão de beleza que ficava numa grande avenida. Ao final do dia uma barraca de alumínio era montada na frente do local e ali se criava mais um cheiro que eu nunca seria capaz de esquecer em toda minha vida. Um cachorro quente completo com direito a todos os ingredientes da época, salsicha, maionese, ketchup, mostarda e batata palha. A simplicidade do lanche tão perfeita em seu sabor não se compara nem de longe aos preparos gourmetizados de hoje.

Menos é mais.

No rádio era lançamento de Pacato Cidadão da banda Skank, mas o que escutávamos mesmo eram as histórias contadas na rádio AM tais como, Papo de Boléia, Sérgio Bocca, Gil Gomes e Eli Correia, hábito que carrego até hoje e passo gentilmente para meu filho.

Na tv iniciava mais uma novela que seria maratonada com fervor. Com o final mais que esperado de A Próxima Vítima, agora nos renderíamos ao amor impossível de Dara e Igor em Explode Coração.

Capítulo por capítulo assistidos com a esperança de mais um final feliz.

As noites quentes inundavam a pequena casa de dois cômodos em que morávamos, era como um convite para ficarmos na rua na espera de qualquer brisa mais fresca para saciarmos o calor.

Minha recompensa era poder brincar na rua com os netos e netas da Dona Carol. A regra era apenas uma, era preciso levar uma sacola ou pote de vidro. O objetivo também era único, quem conseguisse pegar mais vagalumes vencia.

As sacolas e potes iluminados pelos mosquitinhos brilhantes arrancavam gargalhadas da criançada e um certo orgulho de quem havia pegado mais vagalumes.

A inocência fazia parte do DNA de quase todo pupilo.

Ao cair da noite em que víamos os adultos recolhendo suas cadeiras postas na rua ouvíamos também nossas mães nos chamando para jantar. Era hora de soltar os bichinhos de volta à natureza e entrar em casa.

Mais um final de semana chegava e eu mal poderia esperar para andarmos de trem, comer amendoim torrado na lata de óleo e assistir Domingo Legal ao meio dia.

Com certeza não era só o domingo que era legal e sim o mundo inteiro que era muito mais maneiro e supimpa.

A saudade existe e a memória fica.

Que sorte a nossa termos vivido na mesma época que os vagalumes, sem medo de brincar na rua e ficar em rodas de conversas até altas horas da noite.

Criamos lembranças que jamais serão vividas novamente, porém lembradas com carinho e gratidão por termos sido uma criança ou adolescente dos anos 90.

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Lugar feliz

Visitar antigas moradas é a melhor forma de escorar minha casa. Eu.

Recentemente, ouvindo uma palestra sobre autoconhecimento, foi feita a seguinte pergunta: Qual seu lugar feliz?

Algo como resgatar memórias que te causaram conforto. Foi nesse momento que comecei uma grande jornada em busca desse lugar.

Muitas situações vieram a tona. Boas, felizes e claro, as ruins e tristes. Tive uma vida confortável, uma família que sempre me abraçou com muito amor. Minha adolescência, juventude, fase adulta foram meio atribuladas e cheias de percalços. Mas foram bem boas também. Afinal, sobrevivi e estou aqui. A infância foi tudo do bem e do bom. Então, meu caminho de resgate estava em algum lugar dessa fase.

Minha irmã costuma dizer que eu era uma criança hiperativa. Não parava quieta e minha mãe a colocava para cuidar de mim em festas, eventos… por muitas vezes, ela vivia um caos. Gostava de esportes também. Desde pequena jogava tênis, fazia natação, não faltava da Educação Física. Por muitos anos joguei vôlei, participava dos campeonatos regionais e estaduais entre as escolas e representava um clube da cidade. Era levantadora. Essas lembranças me fizeram sorrir! Sorriso largo! E assim prossegui por horas a fio buscando na memória onde estava o meu conforto.

Todo final de semana frequentava o clube com meu pai. Não tinha nem 13 anos. Primeiro o tênis, depois ele ia jogar bocha e eu para a piscina. Por volta das 11h30, o combinado era nos encontrarmos na lanchonete. Nossa, era tão gostoso quanto subir no escorrega e me jogar de barriga na água gelada dando muitas risadas com os amigos. E lá nos encontrávamos. Seu Wilson era de pouca conversa, mas no clube era muito sociável e rodeado de bons amigos. Todos me conheciam. Era muito bacana.

O ritual era primeiro o bolinho de bacalhau com soda e limão. Depois, sentávamos numa mureta que tinha na lateral da lanchonete, ficávamos olhando para as piscinas chupando picolé de côco. Ele costumava a cruzar as pernas e me colocava para sentar em um dos seus pés para conversarmos enquanto me balançava. Não durava muito e ele já falava: chega dessa “melação” e termina seu picolé.

Ao lembrar desse momento, me deu um calor no coração, senti um aconchego e uma felicidade tomou conta de mim. Ali era meu lugar feliz!

Hoje, sempre que preciso de colo, de segurança, até mesmo o que fazer diante de alguma situação, me vejo naquela mureta, aquele balanço e parece tudo ficar bem.

Volto para o presente com um delicioso sabor de picolé de côco. Minha memória feliz! Meu lugar feliz!

Dani Fantini – Bela Urbana, Relações Públicas de formação. Se jogando na escrita de coração!
Mãe da Marina, filha super companheira! Cuida da casa, trabalha com gente, ama animais, plantas, é cercada de bons amigos e leva a vida com humor! Pode-se dizer que é completa, mesmo faltando algumas peças nesse enorme quebra-cabeças que é viver!

Foto Dani: @solange.portes

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A bota

Quando eu tinha 25 anos, morei em Londres, de lá fiz algumas viagens pela Europa e uma delas foi para a Grécia, foi um período da minha vida que recordo com muito carinho, cheio de aventuras, desejos e anseios pelo futuro, aquele tempo da vida que a gente gosta de lembrar, contar as histórias e se sentir grato pois teve essa oportunidade e aproveitou, esses dias organizando armários, encontrei uma bota preta, de couro, que me transportou novamente para aquela viagem, fiquei nostálgica e revivi o dia que a comprei, eu viajei com uma mochila pequena, a viagem durou uns 10 dias, já não me lembro bem, portanto não tinha e nem queria levar muita bagagem, eu caminhei muito e a bota que levei estragou, tão velha estava, preciso dizer que eu vivia um período de decisões, eu sabia que teria que voltar ao Brasil em breve pois meu segundo visto estava vencendo e namorava um rapaz britânico que residia em Londres, eu era jovem e cheia de intensidades, portanto quando me deparei com a bota preta em uma vitrine de uma loja de calçados em Atenas, pedi para dar uma olhada e vi que tinha sido fabricada no Brasil eu fiquei muito emocionada, um turbilhão de pensamentos inundaram minha mente, pensei que Deus tinha me enviado um sinal de que era hora mesmo de voltar para o Brasil, experimentei, ficou super confortável e o preço era ótimo, comprei.

Essa bota me acompanhou até hoje (52 anos), já levei ao sapateiro para trocar a sola, quando já não fazia mais meu estilo eu a mantive no armário, guardei pensando que talvez uma das minhas filhas a usasse algum dia, e efetivamente uma delas a usou, hoje já não quer mais e decidi doá-la, vou deixá-la ir com muita ternura, e que ela faça feliz a próxima dona ou dono, assim como me trouxe tantas alegrias, caminhei com ela por lindos lugares, vivi momentos cheios de amor e encantamento pela vida, ela testemunhou muitas descobertas e se maravilhou comigo na caminhada, ela foi companheira de um período mágico que eu não imaginava que fosse viver um dia, um calçado que é pleno de significados para mim, eu sou dessas pessoas que gostam de olhar os objetos que tem e sentir a energia deles carregada das minhas histórias, um marcador de página que comprei ou ganhei, um enfeite que alguém me trouxe de algum lugar, um livro que li em determinada viagem e que me acompanhou na jornada, tudo isso faz parte de memórias que são muito preciosas para mim, por isso vivo um paradoxo constante: quero ter menos coisas e ao mesmo tempo tenho dificuldade de me desfazer de determinados objetos que me trazem alegria e doces memórias ao olhar para eles, e respeito isso, tudo têm sua hora certa: a hora de me desapegar da bota chegou.

Eliane Ibrahim – Bela Urbana, administradora, professora de Inglês, mãe de duas, esposa, feminista, ama cozinhar, ler, viajar e conversar longamente e profundamente sobre a vida com os amigos do peito, apaixonada pela “Disciplina Positiva” na educação das crianças, praticante e entusiasta da Comunicação não-violenta (CNV) e do perdão.

 

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O tempo e a memória: registros e interpretações!

Hoje encontrei fotos que tirei quando fazia ensaios fotográficos no Rio de Janeiro. Como o tempo passou e de lá pra cá muitas transformações, conexões, estudos, treinamentos construídos e realizados, trabalhos corporativos, relacionamentos, afastamentos e reconexões. Fiquei refletindo em como a construção de nossa história pessoal em nossa memória não é algo linear com uma lógica ascendente e previsível, apesar de ter uma lógica e fazer todo o sentido, parece que o tempo, como dimensão psicológica, passa de forma diferente para cada pessoa, e às vezes uma pessoa pode guardar na memória uma infinidade de caminhos lógicos para o mesmo processo vivido. Podemos escolher dentro de todas as possibilidades que nossa mente apresenta quais nuances e cores recolher de nossa história?

Quando estudei a matéria de Filosofia da história percebi algo parecido em relação a história da humanidade, onde pude entender que nossa trajetória humana guarda uma memória ancestral que pode ser contada a partir de variados enfoques, mesmo que o caminho percorrido tenha sido um só considerando apenas a lógica dos fatos, com ciclos de início e fim para grandes civilizações, mas deixando registros e evidências recolhidos e preservados. Se a narrativa apresentada ou escolhida já tem um enfoque que depende de diversos fatores, onde encontrar a memória ancestral que nos indique para onde estamos indo, que caminhos já percorremos e o que precisamos fazer para melhorar nosso futuro como grupo humano?

Essas questões me fazem buscar cada vez mais nos antigos ensinamentos das tradições que a filosofia me presenteou. Quando observamos a natureza com cuidado, podemos perceber a integração da vida que se reflete na percepção de unidade. Ao caminhar por uma trilha encontramos pedras, plantas, animais, e muita diversidade, mas nunca tive sensação de que algo estivesse isolado, na verdade, tudo parecia estar em comunhão.

Muitos sábios e filósofos apresentaram essa questão da unidade presente na multiplicidade. Desde os pré-socráticos dos séculos antes de Cristo até filósofos modernos, a busca da sabedoria esteve pautada na busca da Causa primeira, fundamento metafísico que por evidência lógica permeava toda a multiplicidade da natureza.

Os filósofos pré-socráticos chamavam a Natureza de Physis, e por isso foram chamados de físicos por Aristóteles, filósofo grego que se dedicou bastante em nos falar desses sábios da Grécia clássica. Se hoje não temos como ler seus textos completos, por causa da ignorância histórica que destrói o que não compreende, podemos ainda acessar seus ensinamentos através do olhar de Aristóteles. Esses sábios antigos tinham uma forma de ver a Natureza como algo completo, e mesmo escolhessem abordar um enfoque da natureza não deixavam de ter como fundamento sua totalidade, asim como percebiam que havia uma direção ou finalidade que se evidenciava na harmonia existente nas relações entre as diversas partes integradas na Natureza.

Para esses sábios essa harmonia presente na multiplicidade da Natureza só era possível por que havia uma Causa primeira de onde todas as dualidades surgiam e para onde retornavam. Portanto outro princípio importante para os filósofos pré-socráticos era que a Causa e a Finalidade eram uma mesma coisa. Por isso muitos estudiosos destes sábios falam do eterno retorno. O que posso explicar mais a frente. Isso que era causa e retorno de tudo que é múltiplo que muitas vezes é chamado por vários nomes na história da filosofia e na história humana: Thales de Mileto dizia que era a Àgua que dava origem e vivificava toda a natureza; Anaxímenes afirmava que era o Ar como alento divino; Anaximandro atribuía a causa da vida ao Ápeiron; interpretado como o “infinito”; Pitágoras apresentava o Número como princípio de toda a multiplicidade; Parmênides chamava esse princípio de Ente; Empédocles considerava a mistura dos elementos terra, água, ar e fogo; Demócrito considerava o Átomo a partícula última que não se divide; Heráclito dizia que o princípio de todas as coisas era o fogo. Muitos comentadores acreditam que Heráclito desconsiderava o elemento metafísico da Natureza, porque seu enfoque principal era sobre o Devir, ou seja, o movimento que transforma todas as coisas que podemos ver através da alternância dos contrários. Heráclito também afirmava que no fundo dessa aparente guerra dos contrários havia harmonia, que vem do Logos, a lei universal da Natureza.

A questão é que cada filósofo da história da filosofia clássica se dedicou a dar um enfoque diferente ao fundamento metafísico que era causa e finalidade de toda a manifestação, “as coisas aparecem e desaparecem”; “do Ápeiron surge a primeira dualidade que dará origem à multiplicidade”; “Todas as coisas surgem em desequilíbrio e buscam se equilibrar” “Voltar ao seu equilíbrio é voltar à Causa primeira”.

Mas afinal o que seria essa causa primeira para os filósofos pré-socráticos?

Ana Paixão – Bela Urbana, filosofa, pedagoga, palestrante e educadora que trabalha com treinamentos há mais de 10 anos