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Eu fugi com as roupas em sacos de sanito

Falar de relações abusivas não é fácil… pois, para quem as vivenciou, o colocar no papel ou falar em voz alta é reviver as situações dolorosas. Eu poderia descrever “n” situações de abuso e relações tóxicas ao longo de 40 anos. Normalmente quem passa por isso, se não se cuidar e buscar ajuda, cai novamente nas mãos de pessoas abusivas e tóxicas. Muda o nome, mas o descritivo das personagens costuma ser idêntico, já dizem os especialistas!

Os relacionamentos abusivos acontecem em várias esferas e nem sempre o abusado percebe a teia em que está se metendo até estar totalmente preso a ela. Comigo foi assim… e por algumas vezes.

Eu havia saído de um relacionamento há alguns meses. Estava literalmente curtindo a solteirice. Naquela sexta à noite, estava já na terceira programação. Fui encontrar amigos em um bar. Cheguei e dei de cara com uma mesa em que eu não conhecia praticamente ninguém. Conhecidos apenas um amigo, que cantava ao som de seu violão, e a amiga que havia convidado. Cheguei bem no meu estilo: vestido curto, cigarro (naquela época podia fumar em locais fechados), falando alto (que é o meu comum, sem beber) e bebi minhas caipirinhas habituais. Um pouco feliz demais por encontrar o amigo cantor, com que à época tinha uma grande intimidade, fizemos uma brincadeira que sempre fazíamos: enquanto ele cantava imitando diversos artistas, eu sentava em uma de suas pernas, fazendo micagens! Essa era eu: sem pudor, sem mimimi, sem me preocupar muito com o que os outros estavam pensando.

Eis que a amiga me chama de canto e me diz que um de seus amigos havia se interessado por mim. Perguntei sobre ele. Ela disse que só o conhecia do trabalho, que ele era gente boa, mas só. Ao voltar para a mesa, muitas músicas e alguns drinks e cigarros depois, ele veio puxar papo. Queria saber tudo ao meu respeito, me ouvia atentamente e concordava com quase tudo, senão com tudo que eu falava. A primeira luz vermelha acendeu e eu não vi. Querer agradar demais e esse excesso de simpatia, hoje eu sei, é sinal de alerta! Faz parte do jogo de sedução do abusador!

Trocamos telefone. Ele viajaria no dia seguinte para a praia para passar alguns dias. De lá, em épocas que não existia whatsapp, ele me mandava mensagens de texto todo os dias e mais de uma vez: “bom dia, boa tarde, boa noite. Só queria saber de você!” Achei fofo! Ele mostrando interesse de verdade, não deixando com que a viagem esfriasse o clima de paquera iniciado no dia que nos conhecemos. A segunda luz vermelha acendeu e eu não vi. Ele não estava querendo manter nada quente, estava era querendo saber o que eu fazia. De uma maneira “fofa” ele controlava meus passos, sem eu perceber.

Enfim, ele voltou. Saímos. Acabamos ficando. Naquela noite, depois de ter fumado no início do encontro (afinal ele me conheceu fumando) e de beijá-lo, fui acender meu cigarro e ele pediu educadamente: Você pode não fumar, por favor? Ok, sem problemas, afinal de contas, ele não fumava! Isso passou de boa… até que um mês depois de começarmos namorar, ele começou a implicar com o meu cigarro de maneira feroz! “Seu carro cheira cigarro, não adianta mascar chiclete, nem sinto mais o cheiro do seu perfume. Odeio esse cheiro. Você tem que parar de fumar!”

De repente, ele começou a me dar roupas de presente. Nada do que eu teria no meu armário. Mais cumpridas, menos decotadas, menos salto, menos cores. Entendam, eu não era uma dita hoje “periguete”. Eu só estava no auge dos 20 e poucos anos, magra e feliz. E me vestia assim. E isso passou a ser motivo de briga constante. Assim como o comprimento das minhas roupas, minhas relações com os amigos (inclusive com os dois que estavam na noite que nos conhecemos). “Meu amor, fala mais baixo. Passa menos maquiagem. Você já tomou duas caipirinhas”. A luz vermelha nesta época não acendia, piscava incansavelmente.

Mas passei por uma situação familiar complicada, e foi na casa dele que encontrei refúgio para fugir de tudo aquilo. Mesmo com todas as luzes piscando, eu precisava de uma rota de fuga naquele momento e escolhi a pior delas.

Com o passar dos meses, reformamos o apartamento dele, com o meu dinheiro (detalhe), mas não conseguíamos nos entender. Eu não me sentia em casa e ele não fazia questão. Prova disso, era que eu estava lá diariamente e que não tinha a minha própria chave do apartamento. Tinha que deixá-la na portaria todo santo dia.

O ser doce e fofo que amava me ver falar começou a me interromper a cada frase nas rodas com os amigos ou mesmo numa conversa a dois. Inconformados de como eu era tratada e da minha submissão, meus amigos se afastaram de mim. Logo, éramos apenas eu, ele e os amigos dele. Chegou ao cúmulo dos pequenos cuidados virarem um controle absoluto. “Onde você está? Que horas você chega? Quem está com você? Deixa eu dar oi pra ela?” Sem perceber a manipulação, troquei o meu salão de beleza que frequentava há anos, por um em frente à casa dele, para assim não perdermos tempo, pois só tínhamos os finais de semana juntos de verdade, visto que ele trabalhava alguns dias da semana em outra cidade. Íamos aos restaurantes e de repente o cardápio não passava mais pela minha mão, porque ele sempre tinha uma sugestão que eu ia adorar.

Fui minguando. Ficando calada. Chorona. Medrosa. Sem brilho nos olhos. Nem de perto a moleca que era antes. Até que a prova de fogo chegou: fui promovida no trabalho e passei a ganhar mais do que ele. E isso o afetou de uma maneira sobrenatural. De repente, não podíamos mais viajar, mesmo que eu tivesse o dinheiro para arcar com os gastos. Não íamos a restaurantes ou passeios que eu queria, porque ele não conseguia pagar e não aceitava que eu pagasse.

O meu trabalho realmente começou a irritá-lo. Eu recebia muitas ligações noturnas e de final de semana, devido ao cargo que exercia na época. Ele xingava a ponto da pessoa do outro lado da linha ouvir, se constranger de desligar. Ele começou a ficar cada vez mais agressivo com as palavras e com as cobranças. Chegou ao ponto de eu não conseguir mais comer ou dormir. Ele deitava na nossa cama e eu esperava ele dormir, para ir a um pufe do lado da cama, ligar a TV no silencioso para não acordá-lo e varar a noite.

Até que um dia, numa das crises de raiva dele por conta de um telefonema num domingo à noite, ele quebrou a casa. Literalmente. Com um murro, fez um buraco na porta do nosso quarto. Espatifou meu telefone de trabalho no chão, quebrou louças. Outra noite no pufe, chorando baixo para ele não acordar.

No dia seguinte, uma grande amiga minha, viu no meu rosto o terror que eu estava e me perguntou o que tinha acontecido. Quando eu contei, ela que conhecia a criatura, pois frequentava nossa casa e se afastou, me disse com o maior amor do mundo: “Xu, você vai esperar o quê? Ele quebrar a sua cara? A gente vai hoje tirar suas roupas da casa dele, aproveitando que ele não está”. E assim fizemos. Expediente encerrado, fomos para a casa dele. E como uma fugitiva, enfiei todas as minhas roupas em sacos de sanito e saí de lá, deixando objetos de decoração e outras coisas minhas. Não queria levar nada que me lembrasse aquele lugar, apesar de ter escolhido e comprado muitas das coisas. Mesmo eu sabendo que era impossível ele aparecer, eu tremia inteira e chorava de pavor!

Liguei para os meus pais, expliquei a situação e disse que não iria para a casa deles para não causar problemas, pois duvidava que ele iria aceitar isso de boa. Essa minha amiga me abrigou com sua família. Foram anjos na minha vida. Mas ele realmente não aceitou. Ligava, me perseguia no trabalho, fazia “tocaia” nos meus pais ou no escritório. Até que um dia, passando qualquer limite do normal, ele ligou no meu trabalho e ameaçou meu funcionário. O nosso chefe ficou sabendo e chamou a Guarda Municipal. Com a possibilidade de uma denúncia formal, ele se “contentou” em ser escoltado para fora da cidade e não me procurou mais.

Passado um mês dessa confusão, voltei a morar com meus pais. Aos poucos, minha vida voltou aos eixos. Mas me doeu por muito tempo, as pessoas falando “ele era tão bonzinho, só um pouco ciumento”. As pessoas a nossa volta, muitas vezes “desculpam” certos comportamentos por causa de outras qualidades do abusador. E externam isso exatamente para quem sofreu, como que cobrando o porque a pessoa desistiu do relacionamento “só por isso”.

Demorei mais de dois anos e muitas sessões de terapia para voltar a me relacionar com alguém. Passados mais de 20 anos, às vezes ainda me pego desconfiando das pessoas e tentando identificar os tais sinais vermelhos. Dez anos depois de terminarmos nosso relacionamento, que creiam, durou cinco anos, encontrei o tal cidadão em um restaurante com a esposa grávida. Me arrepiei. Quando ele me cumprimentou, senti um arrepio. Era a primeira vez que o via desde que havia saído fugida da casa dele, com sacos de sanito nas costas.

As lições que aprendi com ele doeram e muito, mas me abriram os olhos. Se caí em outras relações abusivas e tóxicas? Sim. Mas consegui ver o sinal vermelho antes dele piscar. Vivendo e aprendendo!

Anônimo – Mulher, brasileira,  não quis ser identificada.

SOS – ligue 180

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O click de Alexandra

Edição 1

Alexandra tinha 49 anos, faltavam 05 meses para seu aniversário de 50. Os amigos do trabalho toda hora perguntavam: “- E a festa Alexandra como vai ser?”. Outros diziam: “ – Tem que comemorar com um festão a data”.

Alexandra, ouvia, esboçava um leve sorriso e pensava:  “é até que  seria bom, afinal nem festa de 15 anos eu tive”, mas aí, logo em seguida, pensava em todos os gastos extras, no marido sempre tão indiferente,  e sua  vontade já morria nesses pensamentos.

Ela vivia como muitas mulheres vivem nessa fase da vida: as rotinas da casa, as rotinas do trabalho e algumas idas ao Shopping com Aninha, sua melhor amiga desde os tempos do colégio.

Alexandra não era feia, mas digamos que pedreiro nenhum assobiava quando ela passava. Ela não era gorda, mas não era magra, vivia com um óculos do século passado, as roupas pioravam a situação, brincos, colares, pulseiras, ou qualquer tipo de bijuteria ou acessório não existiam em seu guarda-roupa. Esmalte? O mais ousado era “renda” e mesmo assim, por economia, só uma vez por mês.

No trabalho, Alexandra, sempre foi exemplar, uma contadora de mão cheia. Entrou na “firma” quando ainda era estudante universitária. Aplicada, dedicada, foi logo contratada. Ela cresceu com a firma de contabilidade nesses últimos trinta anos. O que era uma pequena empresa passou a ter uma equipe com mais de cem pessoas, hoje com vários profissionais diferentes: contadores, advogados, estoquista, a equipe de TI,  a assessoria de imprensa etc. Alexandra apesar de ter crescido no trabalho, ficava sempre muito isolada,  muito formal com todos, muito e somente em seus números e cálculos.

Eis que um dia, nesse mesmo ambiente, ela recebeu um e-mail que tinha como assunto “do seu admirador secreto”. Ela abriu o e-mail que estava escrito “Te vejo passar todos os dias, conheço seus passos de longe, seu perfume, o som da sua voz… e abra aqui para ler todo o resto”.

Ela deletou e pensou:  “Bobagem. Só  que a mensagem não saia da sua cabeça e pensava: “Será mesmo que ele me conhece?”

Coincidência ou não, no dia seguinte ela mandou fazer lentes de contato e resolveu aposentar os óculos.

Os e-mails continuavam a chegar, a cada dois dias o mesmo e-mail aparecia, e consequentemente, ela não abria e deletava , mas…se abria para  novas e pequenas atitudes: um batom mais forte, um corte de cabelo moderno, um salto alto, uma roupa mais justa. A cada e-mail não aberto, uma mudança no visual e na alma, e começava a sentir o mundo como há muito não sentia, sem perceber ficou mais leve, alegre, sorridente. Resolveu participar dos “happys” da “firma”.

Mas a curiosidade não saia da sua cabeça, quem seria que mandava os e-mails? Um dia desconfiou do jovem rapaz que cuidava da rede, era um moço bonito, alias, cá entre nós aqui, bem bonito, moreno, com um lindo par de olhos verdes e no auge dos seus 26 anos.

Primeiro seus pensamentos foram cruéis consigo mesma. “Que absurdo você tem idade para ser mãe dele, ele combina mais com sua filha, mas também começaram a vir outros pensamentos: Se essas atrizes da TV namoram garotões, por que eu não posso?”.  E na sua cabeça começaram a parecer todos os casos iguais em que conhecia que ela acreditava que “foram felizes”, pelo menos por um tempo, porque ingenuidade de acreditar no  “felizes  para sempre” ela já não tinha mais.

O marido, alguns anos mais velho, continuava no mesmo passo. Todo dia quando ela chegava em casa, encontrava ele na frente do computador comendo queijo e gelo. Ele não a via, não reparou no novo corte de cabelo, nas unhas vermelhas, nas calças mais justas. Um dia ele olhou mais demoradamente para ela e ela pensou:  “Ele vai falar, reparou”, mas não, só olhou mais demoradamente mesmo e nada disse, talvez tenha pensado, talvez tenha faltado coragem, talvez, talvez…o certo é que voltou para seu computador, seu queijo e seu gelo.

A filha de 16 anos reparou – mulheres sempre reparam – e gostou da nova mãe que via; o filho de 18 anos só pensava no vestibular e, como pai, talvez não fosse um bom reparador.

O moço da rede em um desses “happys” da firma ficou do seu lado. Conversaram, flertaram, e ela, certa que era ele perguntou depois de alguns chopes:

– É você?

E ele:

– Eu o quê?

– Me fala vai? É você?

– Você fica feliz se eu disser que sim?

– Sim

– Então digo que sim, só para ver você feliz.

– Amanhã vou abrir.

– O quê?

– Você sabe.

– Sei?

– Sei que sabe.

– Não sei.

– Sabe sim… Vou abrir heim…

– Hum, então vou esperar… que horas vai abrir? Onde?

Ela riu. Ele não entendeu.

E no dia seguinte ela abriu e literalmente, coincidência ou não, destruiu toda a segurança da rede da “firma”. O e-mail era um desses “supervírus” da informática que clonam os computadores, roubam as informações, e em uma firma de contabilidade isso era o pior que pode acontecer.

O escritório parou. O espanto, os comentários eram gerais: “Por que ela fez aquilo?”, “Que ingênua”, “Por que abriu esse tipo de e-mail?”, “Coitada, vai perder o emprego”. Os olhares eram os piores possíveis. A situação foi tão séria que ela foi mesmo mandada embora, mas ela não se abalou, algo de fato, tinha mudado.

Colocou suas coisas na caixa, deu tchau para poucos amigos que não a julgaram, deu  um ”up” na maquiagem . Quase indo embora, encontrou o moço da rede e disse:

– Eu disse que ia abrir.

Ela caiu na gargalhada e ele também.

Ele levou a caixa para ela até o carro e apanhou no jardim uma flor que entregou para ela. Ela ficou tão emocionada que seus olhos se encheram de água, e pensou:  “Há quantos anos não ganho flores?”.

Dias depois resolveu que não compraria mais queijo e se deu conta de que não gostava de nada gelado. Chega de gelos. Colocou um ponto  final no casamento e, quando saiu para caminhar na rua, ficou muito feliz com todos os assobios que ouviu dos pedreiros.

PS.: A festa de 50 anos foi de arromba, sem economias, dançaram todos até o sol nascer. Os amigos da “firma” foram em peso. Os amigos da ginástica. A turma da faculdade e do colégio foram  reencontrados e também foram. Foi realmente um festão. O gatão dos olhos verdes também foi… mas essa história eu conto em outra.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência  Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos.