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Sobre Manu, vejam só.

Dia Internacional de combate à violência contra a mulher (que deveria ser todo dia!).
Alerta de possível gatilho gatilho. Aborda violência.
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“No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.”

Há quem diga ainda que se trata de lenda. Vou então dividir uma verossímil “historinha”:

Era uma vez uma Mulher, só mais uma entre tantas que tem por aí. Não fora carbonizada no referido incêndio que fez da cor lilás (a mesma do tecido que estava na linha de produção por ocasião da barbárie) o símbolo de uma luta sem fim. A luta por visibilidade livre de falsas validações. Vamos chamá-la de Manu.

Manu era assim, feita de paradoxos humanos. Feita de doçura e um tanto de fúria também, adicionado ao medo, que mesmo estando ali, não a impedia de avançar em seus sonhos. Manu gostava de Arte, Manu gostava de dançar, Manu gostava de pintar, bordar e comer mousse de chocolate. Manu gostava de trapezistas, sempre torcia para que asas brotassem no instante final. Gostava de leões e pequenos insetos, principalmente aqueles vermelhinhos com bolinhas pretas. Manu gostava de crianças e de contar histórias (para crianças e adultos). Manu sonhava de olhos abertos e por vezes vivia de olhos fechados quando o medo vinha lhe visitar… depois abria esses mesmos olhos e continuava a andar.

Um dia Manu resolveu ser mãe. Manu nunca trabalhara em uma fábrica. Minto: Trabalhara uma vez numa fabriqueta de pizzas onde a meta era congelar mil disquetes de mussarela por dia. Tinha como companhia seu constante Sonhar. Sonhava com família, mesa posta, janela em forma de arco, amor e comunhão. Sonhava em ser mãe. Era quase ingênua, afogada em um pueril romantismo.

Um dia, se descobriu grávida. Como grávida? Oras, como engravidam a maioria das mulheres… contou a novidade ao então “companheiro”.

“Manu, tem certeza de que quer ter esse filho?”
“Claro, querido.”
“Não vai ser fácil.”
“Não conto que seja fácil.”
“Ok”.

Esse “ok” lacônico foi o anúncio de tempos de guerra. Enquanto a barriga de Manu crescia, rumo ao nascimento de uma “Manu-mãe” e sua menina (havia uma garotinha dentro dela), seu companheiro enlouquecia. Parecia vibrar com a gravidez, mas não raro, era tomado de acessos de ódio.

“Manu, você não é a mãe certa pra um filho meu. Você sonha demais, Manu, o que você vai ensinar pra essa criança? Arte?”
“Vou ensiná-la a ser feliz”, respondia Manu entre enjoos, vômitos e sorrisos a cada pontapé da criança.
“Ok”.

O “companheiro” começou a enlouquecer mais. Primeiro, botou-a na rua com uma barriga de quase seis meses:

“Vá embora, Manu, senão te encho de porrada. Não estou preparado.”
“Estou grávida…”
“Problema seu”.

E lá se foi Manu, sem lar nem lastro, uma mochila nas costas e a certeza de que seu bebê veria a luz. Dormiu em bancos de postos de gasolina, tentou fugir para outro estado, voltou, dormiu sobre nacos de papelão e sob o frio de chuvas finas. E a barriga teimava em crescer, protegidas pelas mãos de uma Manu em constante estado de prece.

Um dia, o “companheiro”, movido pela vergonha(?), chamou-a de volta “pra casa”.

“Manu, aqui é seu lugar.”

A assustada Manu voltou.

“Manu”- ele começou -“agora que você vai ser mãe, tente ser mais discreta… mãe cuida de criança. Mãe não faz arte”.

Olívia nasceu. Dezoito horas depois de a bolsa estourar. Entre estagiários que dividiam uma pizza na sala do pré-parto, bem na Praça Mauá. Sem analgesia, veio alegria à vida de Manu.

Manu deu peito ainda na mesa de parto. Manu nasceu “Mãe” junto com sua menininha de olhos vivos e muita fome de leite. Olívia era sua Arte maior.

Manu espalhou arte por toda parte: Tons lilases, amarelos e rosas no quarto da menininha. Músicas de ninar em várias línguas de um cd encontrado no Centro: até em iídiche. Havia uma atmosfera de sonho na nova realidade.

Manu voltou a trabalhar aos nove meses de Olivia. Era cenógrafa. Quando não estocava o próprio leite, levava sua pequena para as coxias de teatro. Não tinha babá e queria ver a filha crescer sob seus olhos.

Um dia, chegou em casa e botou a pequena já adormecida no berço. Tomou de seu companheiro o primeiro grande tapa na cara: “Isso não é um jeito certo de ser mãe”.

Manu se recolheu ao quarto, onde trancou-se com a filha enquanto seu companheiro rumava porta a fora para tomar “uns tragos”. Era muito difícil ser pai…

Após sucessivos tapas na cara, Manu foi evitando o espelho. Deprimiu, parou de trabalhar, foi vista como inútil por parentes distantes.

“Meu projeto foi aprovado… aquele roteiro de cinema”… disse um dia Manu, Olívia já com um ano e meio.

A resposta veio em forma de soco. Depois vários, seguidos de chutes. Um dente a menos. Uma lesão no crânio feita a pontapé que não chegou a atingir a meninge. Cusparadas sobre todo o corpo. Ofensas rebuscadas, de “puta” à “louca”. Havia sangue em todo o assoalho. Uma vizinha entrou na sala que não estava trancada.

“Corre, Manu! Pra minha casa!”.

Manu pegou a chorosa Olívia e ganhou a rua. Teve medo de ir à polícia e nunca mais voltou. Demorou a voltar até para si mesma. Também nunca separou-se da filha. Era seu vínculo com a Vida. A Arte foi voltando aos poucos e a Coragem também. Conquistou uma casa com janela em forma de arco, que se não tinha príncipe, ao menos não era proibido sonhar. Por muito pouco, não fora carbonizada. E nunca mais se deixou “apanhar”.

Em um eventual encontro com seu ex-companheiro, não teve dúvidas ao ser ameaçada: polícia e medida protetiva. Não acabaria em brasa nem carvão. Tampouco seria reduzida à mais uma história silenciada em tantas paredes protegidas por hipocrisias. Agora, só lhe interessava Vida.

[Não é mais necessário o consentimento da vítima, muitas vezes paralisadas pelo medo, para denunciar todo tipo de violência contra a mulher. Silêncio pode matar. Denuncie: Disque 180. Quantas “Manus” existem por aí?]

Eu escrevi este texto há dez anos atrás. E hoje posso dizer que a Manu sou eu e potencialmente, qualquer uma de nós.

Claudia Tonelli . –  Bela Urbana, gosta de desenhar e escrever compulsivamente, contar boas histórias e maternar plantas e gatos, que a ajudam a lidar com o ninho vazio. Curte queijos: quanto mais “fedidos e mofados”, mais gostosos.