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Relato Póstumo

Em meados de Novembro Ana galgou o muro da casa de Fernanda, ou melhor dizendo, antiga casa de Fernanda. Não fora uma tarefa branda, mas ao finalizá-la repousando o olhar no quintal de Fer sentiu-se triunfante; satisfeita.

Neste dia em questão completava-se seis meses que Fer já não morava mais nessa cidade, nem país; e muito menos mundo. Essa lembrança tornou a deixar as bochechas de Ana quentes e úmidas pelas lágrimas, fizeram as beiradas de sua boca repuxarem em um sorriso nostálgico e álgico. Ah, Fernanda. Este nome sempre ecoava na mente de Ana de maneira poética e delirante.

Tocada pelo ambiente, Ana cambaleou aproximando-se da piscina que se localizava no centro do quintal de Fernanda. A água e estrutura pareciam devastadas pelo tempo; sujeitada ao abandono, exatamente como Ana estava. Com os pés tocou a borda da piscina enquanto fitava o vazio daquele quintal e respirou fundo. O ar era característico ao ambiente; era úmido e refrescante, levava notas de solidão e nostalgia.

Sentou-se na beirada da piscina e repousou a mão sobre a água suja pelas desastrosas 8 semanas sem um dono e sem amparo. A família de Fernanda mudou de cidade e não haverá mais quem cuide dela. A piscina não terá mais aquela família para atenção aos seus cuidados e Ana não será agraciada com a presença de Fernanda nunca mais. As lágrimas quentes persistiam em escorrer pela face da jovem e os soluços escaparam faceiros por sua garganta má.

Ela não terá mais natais com Fer. Nem tão pouco passará as viradas de ano com ela. Não teria mais aquela companhia gostosa durante a noite. Não encontraria mais ao chegar em casa a pessoa a quem se entregaria em beijos. Não teria mais aquele amor correspondido que ardia em chamas por todo o seu ser. Ana não teria mais Fernanda; E não lhe restava mais nada.

Rolou da beirada à piscina, caiu em escuridão azul, em turbulência; em si. Não queria cair assim. Ana queria Fernandinha com seu cheiro amadeirado e olhar carinhoso; com seus muxoxos doces que acalentavam seu dia e incendiavam a sua existência. Ah, a realidade lhe sufocou tanto quanto a água ao adentrar seus pulmões.

Ana desejava sumir. Sumir junto de Fernanda e ir para o mundo que antes dominava. Oh, como parecia certo… Como foi certo. Pois Ele ouviu suas preces.

O corpo de Ana foi achado duas semanas depois inexplicavelmente conservado na piscina de seu primeiro beijo com Fernanda.

Marisabel Cruz Bela Urbana, enfermeira pós graduanda em docência, finalizando o curso de consultora em amamentação e doula/educadora perinatal. Apaixonada em desbravar novos idiomas, atualmente aprendendo Libras e refinando o inglês. Gosta de rock, MPB e está retomando a paixão e habito pela leitura. Tem 24 anos e signo de touro com ascendente em sagitário. Deleita-se com apresentações de novas culturas e crenças em sua vida, estando sempre em busca de experiências reconfortantes e renovadoras.

NOTA: Memória criada aos 14 anos; retomei e a revisei aos 24 anos)

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Sobre relacionamentos abusivos – parte 1 – Coringa

Dizem que os amores são únicos e há quem acredite que na vida toda existe somente um amor.

Como saber se não apostar todas as fichas?

Nunca fui das pessoas que acreditam em contos de fadas e amores impossíveis, o que mais almejava era uma boa companhia para poder relaxar comigo numa tarde de domingo sem muita pretensão. Então assim te conheci.

Você se aproximou e aos poucos fomos nos conectando de uma forma surreal, completa e única.

Abreviamos todos os passos tradicionais de uma relação e nos casamos após o primeiro beijo. Apelidamos nossa casa e criamos raízes e razões para ficarmos juntos para sempre.

Você me dizia o quanto valia o risco de se jogar na vida e me apresentou um lugar maravilhoso, onde seria meu refúgio e o nosso lar. Eu me entreguei, mergulhei, te contei todos os meus segredos e em troca você me revelou os seus.

A conexão já havia sido criada e em tudo estávamos ligados. Eu e você contra o mundo e lendo nossos signos pelas estrelas de madrugada.

Eu era um livro que você já havia lido.

Surreal mas sentíamos que não poderia ser algo comum.

Nos jogamos nessa imensidão sem ao menos nos previnir. Fomos de peito aberto segurando nossas mãos e voando no espaço.Você me fez perder o medo, me segurou, me amou em detalhes.

Numa noite de amor percebemos juntos o quanto estávamos ligados de corpo e alma. Te olhei e depois de um longo beijo me olhou e disse que eu era a sua Arlequina e assim como o Coringa eu era uma criação da sua mente e que havia me encontrado depois de muito procurar.

Éramos feitos um para o outro.

Nada mais poderia dar errado para nós e entre juras de amor te jurei, ninguém mais poderia me separar de você além de você mesmo e assim eu te provaria meu amor.

E ali descobri que a pior mentira é aquela que contamos a nós mesmos.

Você sumiu por uma noite e me fez desabar em lágrimas sem ao menos saber onde estava.

Os dias se passavam e a única razão pela qual me fazia apostar nessa relação era única e exclusiva de que você e só você conseguia me enxergar atravéz da alma.

Mas esquecemos que energia demais também gera explosões e danos irreversíveis.

Não seria diferente conosco.

Tanta sintonia poderia se voltar contra mim e demorou para eu entender.

O ‘amor tóxico’ nunca mostra seus gatilhos, ele os cria ao longo do tempo. Uma mentira que gerou várias outras e resultou num cenário de tragédia anunciada.

O ciclo precisava ser encerrado, porém como arrancar uma árvore que já tinha dado flor mas momento apresentava espinhos?

Mesmo machucada e com mil motivos para ir embora decidi ficar.

Te segurei, te cuidei e curei todas as tuas feridas. Na tua escuridão eu quis ser luz e na tua fome eu quis ser pão.

Eu só não imaginava o quão doloroso seria as páginas seguintes deste livro.

Dançamos por muito tempo no silêncio onde a música era o delírio.

Continua …

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor.