Posted on Leave a comment

VIDA

Pensei em escrever sobre a quarentena, sobre o medo, sobre o amor, sobre a solidariedade, sobre um papa idoso que caminha sozinho, por uma grande praça, levando consigo a fé de milhões, sobre os números do coronavírus, que sobem e descem nos noticiários, sobre a morte…. mas, no fundo, tudo se resume à vida. Tudo o que fazemos é para mantê-la, preservá-la, esticá-la. Como não sabemos muito sobre o além morte, penso no que sabemos sobre a vida, no agora. O imenso privilégio de tê-la, seja do jeito que for:

A vida, solteira, que está presa em quarentena num apartamento na cidade grande, escuta ressabiada o silêncio das ruas e, em contrapartida, encanta-se ao ouvir as aves (elas sempre estiveram lá, mas ninguém francamente prestava atenção); como quase não há conversa, a não ser as virtuais, a vida presta mais atenção nos sons internos (do corpo e da mente) e cria uma rotina dentro do casulo em que está vivendo. Ela compartilha com seus vizinhos idosos a compra do supermercado e se espanta com todas as lojas fechadas – como se ela estivesse em um filme de ficção científica, ao vivo e a cores. Ela pisa no acelerador e volta para casa, onde se senta no sofá e vê séries variadas.

A vida, casada, faz cabaninha na sala com os filhos e vez ou outra olha para o marido com cara feia, pois é a vez dele fazer o jantar e parece que já se esqueceu disso também: assim como das toalhas molhadas em cima da cama, de lavar a louça do almoço… A vida ama sua família, mas seu dia a dia é tão corrido, que ela não presta tanta atenção assim nem em si mesma.
Agora tem opiniões formadas e duradouras sobre o homeschooling (quem inventou essa barbaridade??) e está, aos poucos e na prática, ensinando o marido quarentão que não é um favor o homem lavar a louça e dar banho nos filhos. Agora ela senta na cama e conta histórias para os filhos dormirem.

No meio do mato, na pequena casinha caiada, não há espelhos, então a vida presta atenção nos rostos das pessoas que estão ali com ela. Todos os dias, a vida persegue uma bela borboleta amarela que insiste em botar seus ovos no pequeno pé de maracujá: a vida respira e separa as lagartas das folhas, sem violência, mas desejando que busquem outro lugar para se alimentar e não aquele pezinho combalido que só tenta crescer e deitar suas flores para o céu. Todos os dias, a vida persegue uma galinha meio branca e preta – como um sorvete de flocos – porque ela insiste em atacar os canteiros recém lavrados. A galinha sempre volta, no entanto: acho que se diverte com os gritos histéricos que a vida às vezes dá. Todas as tardes, ela recebe a visita de três cães das redondezas, os quais insistem em fazer xixi nos canteiros. E a vida segue gritando com eles também, porém os danados sempre voltam, talvez em busca de mais gritinhos histéricos. A vida monta uma rede embaixo de uma velha e grande árvore e se deita, nos dias quentes, matizada pelos raios de sol que escapam por entre as folhas.

Até onde a vista alcança é verde. Verde que se refaz em certos lugares pelo mundo. O céu é azul como deveria ser em todas as cidades (e alguns cidadãos têm redescoberto suas próprias cores porque a poluição diminuiu de maneira considerável). Agora chove lá fora, uma chuva mansa, dessas que lavam e levam o ruim embora. A vida reconhece o privilégio de estar
protegida no mato ou protegida dentro de um apartamento, neste momento, e sabe que há outras vidas perdidas, sem rumo, vivendo num fio que balança. Mesmo assim, essas vidas passaram a ser olhadas para além de pastorais e de ONG´s: pessoas comuns e extraordinárias saem para as ruas e simplesmente veem a vida no meio fio e dialogam com ela: se não há
abraços, há sorrisos; o calor do corpo é substituído pelo calor da comida que chega quente, afeto que vêm de outra forma. A vida se parece com a música Adágio for Strings: seiva poderosa em raízes velhas, o vento que nunca se cansa, o momento em que achamos que não dá mais e depois nos surpreendemos porque enquanto há vida, estaremos lá, seja do jeito que
for, à disposição dela. Ela pode ser feita de vento, sol, tempestade, areia… ela existirá enquanto houver esse pulsar dentro dos corpos, essa pulsão pelo conhecimento, essa luta por quem precisa, essa preocupação com o outro, esse desejo de sair e de ver o mundo… É a vida que se reconhece através de um outro olhar e que recomeça, hoje e sempre!

Natalia kuhl – Bela Urbana. professora, leitora entusiasta de diversos tipos de escrita, amante de músicas – nem sempre clássicas. Falante e com memória seletiva. Raivosa diante da injustiça e amiga de coração aberto. Escrevo muito para mim mesma e canto no chuveiro.

U

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *