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Numa noite da primavera de 2005

“Anunciaram que você morreu,

Meus olhos, meus ouvidos testemunham:

A alma profunda, não.

Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá

(Pela força persuasiva do tempo).

Virá súbito um dia,

Inadvertida para os demais…

Mas agora não sinto a sua falta.

(É sempre assim quando o ausente

Partiu sem se despedir:

Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.

Direi: Faz tempo que ele não escreve.

Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.

Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?

A vida é uma só. A sua continua

Na vida que você viveu.

Por isso não sinto agora a sua falta.”

(Trechos do poema -A Mario de Andrade Ausente, Manuel Bandeira).

Letícia, minha menina querida!

          Tarde de primavera que ameaça chover,

Ao olhar para o céu vejo nuvens escuras carregadas querendo despencar.

Sabe, Lê, o céu desde pequena me inquieta…

Acreditava que com uma escada gigante, como aquela de bombeiros, alcançaria o seu topo, tocaria nas nuvens e finalmente descobriria quem lá habitava:

Seriam os anjos? São Pedro? As pessoas que quando morrem vão para o céu? Só os bons conseguem uma vaguinha? Se tivermos muito pecado não vamos para lá?

Afinal, o que acontece neste lugar?

Sabia que “… o céu ficava em cima do chão. O céu que continua. Em cima do céu há mais céu. E depois do céu do céu há mais céu. E depois de depois do céu do céu nenhum planeta, nenhum cometa, nenhum meteorito. Só o céu e céu e céu sem fim nem infinito”.(Arnaldo Antunes).

Nessa tarde que sento ao computador para escrever a você carregada de céu, retornam a minha memória fragmentos de um outro dia que percebi que como a mim, o céu, também te provocava um desassossego.

 Você, Lelê, sentada no colo de sua avó bem próxima à janela olhando para o alto. Olha para sua vó Luiza e pergunta:

“O vô Agapito está no céu?” No seu rostinho paira muitas dúvidas, algo estranho povoa seus pensamentos,

 Silêncio! “Ah! Minha filha, o seu avô está no céu!”

 Letícia pára, olha se perguntando, estranhando um pouco quem sabe,

Afinal, o céu sempre parece tão distante de nós e seu avô é uma figura tão presente no seu dia-a-dia:

nas diversas histórias que contamos a respeito de seus gostos e manias quando nos reunimos;

nas situações diárias que faz com que muitas vezes entre nós imaginemos como ele agiria, o que diria;

nas fotografias das nossas viagens para o sítio na Bahia que emitem sinais fortes, poderosos de sua presença;

nas coisas velhas, de um outro tempo que guardam o seu jeitinho;

nas perguntas que muitas vezes lançamos querendo ainda suas respostas;

nas idas ao cemitério para colorir seu jazigo e ali você corre de um lado para outro, menina travessa, trazendo água para encher os vasos com flores de cores fortes e vibrantes, suas preferidas!

Saiba que seu avô adorava comprar tecidos e vasos de flores alaranjados, roxos, lilases, amarelados, compondo uma “dinâmica botânica de cores!” (Zélia Duncan). Agora quem sabe, me dou conta das suas preferências nas minhas, nas cores que colorem minhas roupas, meus colares!

Nas lembranças das tardes de sábado que saíamos eu, seu pai, sua avó e seu avô, andando pelas ruas do centro de São Paulo, da Consolação a Sete de Abril, de lá até a 24 de Maio, atravessando o Vale do Anhangabaú, de mãos dadas, caminhando e ouvindo as lembranças do tempo quando chegou nessa cidade e como se encantou pelo letreiro iluminado do Hotel Jaraguá que trazia as últimas notícias. E hoje seu pai, Alexandre, caminha com você por essas mesmas ruas, contando às histórias que ouviu e quem sabe, inventando tantas outras…

Então, algo parece não combinar…Tão perto e ao mesmo tão longe?!Tão longe e ao mesmo tempo tão perto!? É possível?

Depois de um tempo, Lê responde: “O céu está tão longe, mas o meu avô está bem perto, né vó!?”

Sorrisos emocionados inundam a tarde. E de fato, como diz o poeta a sua vida, a do vô Agapito, continua na nossa vida. Por isso, quem sabe nos pareça tão perto! Acho que a sua sensação é similar a do poeta, seu avô apenas ausentou-se! Mesmo não o conhecendo você tem uma familiaridade com ele que não permite tamanha distância.

E a partir dessa lembrança que resolvi contar para você um pouco mais sobre o vô Agapito,

Nome esquisito, ao longo dos anos escutei as mais diferentes versões sobre seu nome, lembro-me com nitidez dele soletrando seu nome A-GA-PI-TO, muitas vezes ao telefone,

Para as pessoas que não entendiam quando ouviam o que ele dizia, soava estrangeiro.        

E de fato é estrangeiro, seu nome era uma homenagem a São Agapito, santo italiano que sua bisavó retirou de um calendário.

E quem sabe, todo migrante quando chega a essa cidade sente-se um pouco estrangeiro.

Imigrante nordestino, semi-analfabeto, saído de um vilarejo chamado São Felipe, aproximadamente 250 quilômetros de Salvador, que veio para São Paulo há 45 anos pela busca e pelo sonho de alcançar condições melhores de vida. E que nas suas práticas cotidianas, criou múltiplas táticas de sobrevivência, especialmente na arte de obedecer, lutar e driblar em meio a situações mais adversas para garantir a mim e aos seus tios (Aguinaldo, Antônio Carlos, Arinaldo) e ao seu pai, Alexandre, possibilidade de fazer uma história diferente: para seu avô uma história diferente começaria por garantir o acesso e permanência dos filhos na escola.

Era seu avô, que toda manhã levava-nos, eu e um dos seus tios até o ponto de ônibus, já morávamos no Centro e íamos até a Freguesia do Ó, estudar num colégio particular, de freiras.

Ainda estava escuro quando saíamos de casa, de mãos dadas, a passos largos e quando chegava no ponto seu avô, sempre tirava do seu bolso um punhado de balas.

Balas: essa guloseima feita de açúcar ou essência de frutas, leite para adoçar nosso trajeto.

Esse homem de poucas letras e de poucas palavras, mas de muita sensibilidade adorava deixar bilhetinhos nas datas especiais, tais como, aniversário, Natal, junto com seus presentinhos … aonde escrevia pouco, mas não deixava de dizer que nos amava. Isso me lembra um poema que gosto muito, da Adélia Prado, que diz assim: “…Minha mãe acha estudo/ A coisa mais fina do mundo./Não é/ A coisa mais fina do mundo é o sentimento./Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:/ “Coitado, até essa hora no serviço pesado.”/Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente./Nem falou em amor. Essa palavra de luxo.”

Sua avó guarda como relíquia alguns postais enviados por seu avô de quando ainda namoravam, coloridos e assim escritos: “… Ofereço A minha queridinha Luiza França com amor. Hagapito Santos”.

Sabe Lê, nesses cartões seu avô escreve seu nome de duas maneiras, algumas vezes com H outras sem; a mesma confusão, que muitas pessoas faziam quando escreviam seu nome. (Risos emocionados de saudades!).

Seu avô tinha dificuldades com o mundo das palavras, ou melhor, quem sabe “corrompesse o silêncio das palavras, não gostava de palavra acostumada” como bem diz, Manuel de Barros. Porém, tinha muita facilidade com o mundo dos números. Mais ou menos na sua idade, era ele que me ajudava a fazer as listas intermináveis de problemas de matemática. Aí, não havia dificuldade de compreensão e sim, muitas facilidades! Nunca precisou de calculadoras, no supermercado fazia de “cabeça” as contas e me espantava ao ver que o valor calculado estava muito próximo do que foi gasto: seu avô era o nosso “homem que calculava.”

Das balas aos números, dos números as letras, das letras aos livros…

Uma grande paixão de seu avô que também se tornou minha: nunca deixou de comprar as enciclopédias (Conhecer, Trópico, Os Bichos…), dicionários, gramáticas, as revistas, os jornais e quando nasci comprou a Coleção de Monteiro Lobato: sem dúvida era a forma de trazer para dentro de casa a cultura letrada que ele tanto admirava, mas não teve a oportunidade de usufruir e que sempre ocuparam lugar de destaque na estante e ele dizia: “Não é só para ver, é para tocar, pesquisar!” Usufruíamos do seu desejo, mexíamos por ele…

Quando seu avô morreu, descobrimos um fato revelador remexendo nos seus arquivos pessoais, organizados nas noites de domingo quando eu ficava por perto para ganhar papéis para brincar e para ajudá-lo a rasgar o que não servia.

Nos deparamos com uma preciosidade: uma pequena hemeroteca, sabe o que é isso?

É a sessão da biblioteca onde estão jornais e revistas. Seu avô organizou a sua guardando artigos de jornais e revistas que narravam os estudos sobre a diabete (vovô era diabético a mais de vinte anos) sonhava que os avanços da medicina propiciassem a tão esperada cura e o abandono da insulina. Montou sua pequena hemeroteca sem nunca ter entrado em uma biblioteca!

Então, minha menina, posso dizer que dele herdei a paixão pelos livros, pelas revistas e a mania de guardar artigos e suplementos de jornais que sempre acredito que um dia vou usar e não é que às vezes acabo usando mesmo!?! E, agora escrevendo para você dou-me conta o que fez com que anos mais tarde eu optasse por ser bolsista na Unicamp do Arquivo Edgard Leuroth, no IFCH. Trabalhava com recortes de jornais da década de 20 sobre a origem da Coluna Prestes e a vida de Miguel Costa, já ouviu falar sobre isso?

É uma parte muito importante da nossa história e qualquer hora conto um pouco para você.

Mas, nessa época uniam-se muitas vontades da sua tia: a primeira era a tentativa de me aproximar da História, afinal, era minha primeira opção no vestibular da Unicamp e outra para mexer, vasculhar, organizar documentos antigos, as marcas de meu pai em mim!

Lelê, num dia há vida. Vovô seguia um dia após o outro, sonhando apenas com a vida que se estendia a sua frente, com a chegada da tão desejada aposentadoria, depois de anos, muitos anos de árduo trabalho, fazendo muito serão para garantir a sobrevivência de sua família. Com a aposentadoria desejava retornar para sua terra, apesar da paixão pela cidade aonde criou seus filhos, sentia-se aqui, um pouco estrangeiro e sonhava retornar para o seu sítio, para cultivar a terra, reencontrar suas raízes, suas marcas. Porém, a vida nos aprontou uma surpresa, de repente aconteceu sua morte.

Mas, a vida tem nos ensinado que vovô ausentou-se e o que “a memória amou fica eterno”(Adélia Prado).

Direi: Faz tempo que não andamos de mãos dadas.

Irei ao centro da cidade: E na volta pararei em frente ao letreiro do Hotel Jaraguá.

Imaginarei: Está no sítio consertando a cerca e lá vem ele caminhando a passos largos, assoviando e anunciando sua chegada.

Um abraço apertado, com amor.

Tia Déia.

Andreia dos Santos de Jesus – Bela Urbana. Paulistana, pedagoga formada pela Faculdade de Educação da Unicamp. Uma mulher negra que escolheu a escola como morada. É nesse terreiro que honra meus ancestrais, travando batalhas e criando possibilidades poéticas de reexistir. È a orgulhosa Mãe de Marina, a menina que veio do mar, e que traz na sua pele a cor da mestiçagem brasileira.

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